Quem convive com cachorros em casa e vive em uma área onde a leishmaniose visceral é uma ameaça já conhece a rotina. De tempos em tempos, equipes da prefeitura vêm visitar o bairro e pedem para ver os animais. Se algum apresentar sinais de doença, logo é requisitado para fazer exame. Se o resultado for positivo, a sentença é o eutanásia.
Adotada desde a década de 1950 no Brasil, a eutanásia de cães tem sido questionada pela comunidade científica pela ineficácia em conter a leishmaniose visceral.
A falta de eficácia da medida como política de prevenção pode ser vista a olho nu: em 1990 foram registrados 1.944 casos da doença em humanos no país, número que subiu para uma média de 3.500 a partir de 2004 e se mantém nesse patamar até hoje.
A letalidade da doença (taxa que indica a proporção de mortes por número de casos) só aumenta: passou de 3,2, em 2000, para 6,2 no ano passado, segundo dados do Ministério da Saúde. Isso significa que, a cada 100 pessoas infectadas, 6,2 devem morrer.
Para o médico e pesquisador Carlos Henrique Costa, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e professor da Universidade do Federal do Piauí, o Brasil é um dos poucos países que ainda adota a matança de cães em larga escala como forma de controlar a leishmaniose visceral.
“A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez uma revisão sistemática de estudos e a conclusão é que não existem evidências de que matar cachorro controla o calazar”, diz. “E o Código Sanitário Internacional diz que não se pode adotar uma política pública sem que haja comprovação científica”, alfineta.
Costa alerta que, além de ineficaz, matar os animais pode ter até efeito contrário ao que se espera. Isso porque, durante o rastreamento para eutanásia de cães infectados, muitas vezes são sacrificados também animais que têm o parasita, mas não desenvolvem sintomas. Mortos, eles deixam de se reproduzir e gerar indivíduos resistentes à doença. A longo prazo, sobram apenas cães sensíveis, o que poderia agravar ainda mais o cenário.
Por último, é preciso considerar que, embora seja um reservatório, o cão não é o único. Animais silvestres, como a raposa e o cachorro-do-mato, também transmitem a doença. Pesquisas também já encontraram o agente da leishmaniose visceral em gatos, embora se acredite que os felinos sejam mais resistentes ao protozoário.
Tratamento vetado
Muitos tutores de cães e veterinários são contrários à eutanásia compulsória e procuram tratar os animais diagnosticados com a doença. Os recursos, no entanto, são limitados. A Portaria nº 1.426, de 2008, publicada pelos ministérios da Saúde e da Agricultura, proíbe o uso de medicamentos contra a leishmaniose visceral de uso humano, ou seja, os mais eficientes.
A veterinária Fernanda Kerr, que atua na ONG Arca Brasil, de proteção a animais, conta que há tratamentos alternativos que trazem resultados bastante positivos quando o cão é jovem e a doença é descoberta cedo.
Ela acrescenta, também, que o teste de diagnóstico usado no rastreamento é impreciso e pode gerar falsos positivos. “O único exame definitivo é a punção da medula ou de outros órgãos, o que é inviável para o sistema público”, explica. Há, inclusive, um estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, em 2004, que analisou rastreamentos realizados em Minas Gerais de 1993 a 1997 – dentre 15.117 testes identificados como positivos, 12.925 eram falsos positivos.
Kerr defende que o dinheiro gasto para fazer exames e matar animais poderia ser investido em prevenção. “Há diversos produtos disponíveis no mercado, como coleiras e repelentes, e para todos os bolsos”, comenta. Uma campanha lançada pela ONG também alerta para outras medidas para evitar que o cão seja picado, como mantê-lo dentro de casa entre 18h e 6h.
A veterinária também afirma que existe uma vacina contra a leishmaniose canina que diminui a chance de infecção e também é usada para controlar os sintomas. Ela só está disponível em clínicas particulares e cada dose custa de R$ 80 a R$ 120 (são necessárias três).
Costa e outros especialistas, no entanto, avisam que faltam estudos com mais indivíduos para garantir a eficácia da vacina. O próprio Ministério da Saúde também não recomenda a vacina por considerar que ainda não há provas de que ela proteja humanos. Vale lembrar que uma vacina para cães chegou a obter aprovação do Ministério da Agricultura.
Autorização judicial
Casos recorrentes de tutores que conseguem resultados positivos com medicamentos têm feito com que muita gente recorra à Justiça e consiga autorização para tratar o animal. O advogado e veterinário André Fonseca, de Campo Grande (MS), tem vários clientes que conseguiram. Na capital, que apresenta altos índices de infecção, muitos tutores tomam atitudes extremas para não perder seus cachorros.
Fonseca já ouviu casos, por exemplo, de gente que tenta comprar remédios de uso humano por contrabando, da Europa (lá o tratamento dos cachorros com leishmaniose é permitido). E de pessoas que mandam o cachorro doente para uma cidade com menos vigilância.
Pesquisas
Os estudos mostram que a leishmaniose visceral é uma doença difícil de ser combatida. Para piorar, o parasita e o vetor têm características diferentes em outros países que sofrem com a enfermidade – o que funciona em outro continente pode não valer para o Brasil. Mas os pesquisadores concordam que, em vez de eliminar cachorros, o combate ao vetor e as pesquisas com vacinas deveriam ser prioridade.
Há um estudo feito no Irã que demonstrou a eficácia do uso de coleiras repelentes – medida que foi mencionada pelos especialistas. O Ministério da Saúde informou que está financiando um estudo para avaliar o impacto dessa ferramenta no controle da doença em municípios com transmissão intensa. De qualquer forma, o produto apenas afasta o vetor, não acaba com ele.
Destinação correta do lixo e limpeza de terrenos baldios são outras medidas importantes que evitariam a doença, como aponta o professor da Unesp.
Mesmo assim, mais um aliado para tutores e animais foi anunciado. Um estudo publicado recentemente na revista Acta Tropica, e que pode ser lido na íntegra aqui, mostrou que um fármaco desenvolvido no Brasil e batizado de P-MAPA (abreviação de agregado polimérico de fosfolinoleato-palmitoleato de magnésio e amônio proteico) melhorou o estado clínico e a imunidade de cachorros com sintomas de leishmaniose. Segundo os pesquisadores, a droga poderia ser usada como adjuvante no tratamento convencional da doença.
Mas, assim como ocorre com a dengue, o ministério enfatiza medidas que devem ser tomadas pela população: “É fundamental a limpeza de quintais através da retirada de matéria orgânica (folhas, troncos, restos de vegetação), lixo, limpeza periódica dos abrigos de animais domésticos e, se possível, manter os abrigos afastados da casa. Recomenda-se, também, como forma de impedir que o vetor se instale no intradomicílio, o uso de telas de malha fina em janelas e portas”.
Vitória
Antonio da Silva, de Belo Horizonte (MG), conta que não precisou entrar na Justiça para tratar seu companheiro, um maltês chamado Luan (na foto), diagnosticado com leishmaniose visceral. “Aqui não são tão severos”, comenta.
Luan está assintomático há cinco anos, graças a um medicamento veterinário de uso diário, o alopurinol. O maltês usa coleira com repelente e até já cruzou nesse período. “No ano passado, eu até deixei o pessoal da prefeitura fazer o exame nele e deu negativo para a doença”, comemora.
Fonte: UOL
Nota da Redação: Tutor, informe-se sobre a leishmaniose e trate seu animal, pois buscar o tratamento é um direito de todos nós, animais humanos e não-humanos. Você pode assistir o discurso de Silvana Andrade, em Seminário da ALESP, falando sobre o problema da leishmaniose no Brasil aqui. Leia também Leishmaniose: o cão não é o vilão e conheça seus direitos legais para proteger seus cães da eutanásia aqui.