A matança de jumentos para exportação cresceu 8.000% entre 2015 e 2019, conforme comprovou pesquisa de pós-doutorado realizada na Faculdade de Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). A autora, que expõe o risco de extinção inerente à espécie em decorrência das mortes para consumo humano, é a socióloga e especialista em relações humano-animais, Mariana Gameiro.
Em entrevista à apresentadora Juliana Maya, do programa Tarde Nacional – Amazônia, a socióloga explicou que o aumento no número de jumentos mortos para exportação tem relação com o interesse de alguns países, especialmente a China, por uma substância encontrada na pele do animal que é utilizada na produção de um “medicamento” chamado “eijao” e que não tem qualquer comprovação científica de eficácia.
A substância, segundo Mariana, é usada pela Medicina Tradicional Chinesa há mais de 3 mil anos. “A questão é que o uso desse produto era restrito a uma elite. E a partir dos anos 1990, começo de 2000, ele se popularizou muito, então o consumo aumentou enormemente. O que a gente viu, e existem dados que mostram, é que a produção do eijao aumenta 20% por ano na China e o reflexo disso é óbvio: eles precisam de mais animais para produzir mais medicamento”, pontuou a pesquisadora.
Mariana explicou que o ritmo da matança supera a capacidade reprodutiva dos jumentos. Segundo ela, como não existe uma cadeia que explora os jumentos da mesma forma como é feito, por exemplo, com os bois pela agropecuária, a taxa de mortes é muito maior do que a população da espécie.
“Realmente isso coloca a população de jumentos em risco em vários lugares, em todos os países do mundo que passam por esse problema”, alertou Mariana. A pesquisadora mora atualmente no Quênia, de onde concedeu a entrevista e, segundo ela, a situação do país é bastante parecida com a do Brasil.
Jumentos podem ser extintos no Nordeste em 2022
Estimativas do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV-BA) apontam que em 2022 os jumentos podem ser extintos no Nordeste em decorrência da matança desenfreada da espécie.
Somente em abril de 2021, 5.396 jumentos foram mortos para a exportação de carne e couro, tendo a China como principal importador desses produtos. O reflexo dessa matança em ritmo acelerado é ameaça imposta à sobrevivência da espécie. Em 1995, cerca de 300 mil jumentos viviam na Bahia. Em 2006, eram 168 mil e em 2017, esse número caiu para 93 mil.
“O jumento está no Brasil desde o tempo do descobrimento e foi se reproduzindo, desenvolvendo espécies que só existem aqui e que vão acabar. Pelos números apresentados nos levantamentos do próprio Ministério da Agricultura, a partir do ano que vem, não teremos mais jumentos na Bahia e nem no Nordeste inteiro”, lamentou a médica veterinária e diretora técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Vânia Nunes.
A pele dos jumentos é utilizada pela Medicina Tradicional Chinesa para a fabricação de produtos fármacos e cosméticos. Além da China, Itália, Portugal, Hong Kong e Espanha são os principais importadores de peles cruas e couros de jumentos, mulas e cavalos. Além de importarem do Brasil, esses países também compram esses produtos da África e da América do Sul.
O risco dos jumentos serem extintos no Nordeste acende um alerta para a necessidade de preservar a espécie. Isso porque a maior parte desses animais vive nessa região. Só na Bahia, estão concentrados 90% dos jumentos brasileiros. Desde julho de 2017, o estado exporta carne e couro para a China. Sozinha, a empresa Amargosa foi responsável pela matança de 44 mil jumentos entre agosto de 2017 e setembro de 2018. Após esse período, uma ação judicial levou à proibição da matança de jumentos na Bahia. A liminar, proferida em novembro de 2018, foi revertida em setembro do ano seguinte.
Para a médica veterinária Vânia Nunes, interesses econômicos estão sendo priorizados enquanto o poder público se omite diante do caso. “Sabemos que existem interesses econômicos que beneficiam alguns segmentos e fazem essa prática continuar permitida, apesar dos alertas que já foram feitos. Essa prática está acabando com os jumentos. A gente não pode admitir uma situação como essa. Estamos vendo uma verdadeira chacina de uma espécie fundamental”, lamentou.
Com a expansão da tecnologia e o uso cada vez maior de máquinas no campo, produtores rurais que antes exploravam os jumentos, passaram a abandoná-los. Conforme explicado por Vânia, a presença desses animais em vias públicas fez com que eles fossem capturados e vendidos a preços baixos para serem mortos para consumo.
Enquanto não são levados para o matadouro, os jumentos costumam ficar confinados em espaços pequenos. Além do sofrimento causado pela falta de espaço, esses animais amontoados uns sob os outros sofrem com a falta de água e comida. Também não recebem cuidados veterinários. Durante o transporte, também são submetidos a maus-tratos ao serem transportados famintos em carretas superlotadas. Além do sofrimento físico e psicológico, os jumentos têm contato próximo com outras espécies sem controle sanitário, o que pode levar à disseminação de doenças que não só podem contribuir para a extinção da espécie, como também podem adoecer outros animais e até humanos.
“Já temos registros de anemia infecciosa equina em grande quantidade e também de mormo, que é muito grave e pode levar os animais e as pessoas à morte. Nisso a gente alerta para os riscos internacionais, já que esse material do abate é exportado. A própria influenza, que hoje faz com que todo mundo tenha que tomar vacina de gripe, veio das galinhas, de uma falta de observação e cumprimento de protocolos sanitários de transporte de animais. A gente tem várias doenças que vêm dos porcos e das galinhas e, nesse ritmo, vamos acabar tendo uma doença que venha dos jumentos”, alertou Vânia Nunes.
Jumentos são encontrados à beira da morte em fazenda
Em julho de 2021, a Associação de Protetores de Animais de Amargosa encaminhou uma denúncia à Polícia Militar em Itatim, município que fica a 230 km de Salvador, na Bahia, para informar que jumentos estavam morrendo de fome em uma fazenda de confinamento de onde os animais eram levados para um frigorífico especializado, em Amargosa, que iniciou suas atividades em 2017 e exporta cerca de 300 toneladas de carne por mês, além do couro, para indústrias de cosméticos e farmacêuticos do mercado asiático.
“O crime é óbvio e a imagem é chocante. Os animais ficam sem comida e a hidratação é muito instável. Só existe um lugar onde a água da chuva se acumula, onde o animal mais fraco acabará caindo e morrendo, contaminando a água que outros beberam. Sem um comedouro, alguns animais cambaleavam devido à caquexia, o que é uma perda de força. Os sinais de fraqueza que provam desnutrição são evidentes. Observou-se também que as carcaças foram engolidas por abutres em decomposição e os animais estavam à beira da morte. Nada foi visto no local, nenhum espaço para veterinário ou depósito de remédios, o que mostra que o animal está em completa pobreza e morreu de fome”, disse o tenente Benjamin, comandante do pelotão da PM em Itatim.