Tradução: Loren Claire Boppré Canales
Desde que passou a ser conhecido que o Departamento de Saúde da Comunidade de Madrid iria sacrificar Excalibur, o cão que vivia com a enfermeira infectada com ebola, para evitar o risco de contágio, mais de 30.000 pessoas assinaram nas redes sociais para tentar frear essa medida. No entanto, o conselheiro madrilenho para saúde, Javier Rodríguez, disse que “não havia nenhuma alternativa além de sacrificá-lo”.
Nem sequer o recurso contra a ordem autonômica, nem a solicitação de suspensão como medida cautelar que interpôs o Partido Animalista (Pacma), surtiram efeito.
O Tribunal Superior de Justiça de Madrid autorizou o Departamento de Saúde a entrar na residência da enfermeira contagiada para proceder a captura do cão do casal para o seu sacrifício.
A licença judicial verificou-se após o marido se negar a permitir a entrada em sua residência, dado que o seu animal de estimação é um membro da família.
Especialistas garantem que nunca ocorreu um contágio entre cão e homem e por isso consideram prescindível o sacrifício do cão. No entanto, outros o consideravam necessário para eliminar qualquer possível risco. Por “princípio de precaução”, mataram um cão que nem sequer sabiam se estava contagiado ou não. Entraram na residência e o mataram, isso sim, sem dor e com altas medidas de biossegurança.
Isto nos soa a filmes de ficção científica, onde extraterrestres ou vilões fazem este tipo de sacrifício com seres humanos cativos em laboratórios clandestinos e ao final chegam os heróis para salvá-los. Aqui não foram extraterrestres, nem foi ilegal, nem alguém veio para salvar Excalibur. Somos nós que com nossa legislação excludente de outras espécies acabamos com uma vida “por precaução” sem levantarmos algumas implicações morais.
Não gritaríamos aos céus se este princípio fosse aplicado aos vizinhos da enfermeira, ao marido, ou a quem a contagiou? Eles também estiveram em contato com a enfermeira. Para alguns humanos, não poupamos as atenções médicas e não há nada de reprovável nisso, só que ao cão nem sequer foi feito um exame, nem foi colocado em quarentena, simplesmente foi decidido que era o melhor para nós, não para ele.
O assunto sobre Excalibur abre as portas, acredito eu, para discussões como a interrupção da gravidez e a eutanásia e a revisão das fronteiras onde colocamos “o valor da vida”. Por quê parece que a vida que mais vale é a humana e quais são os nossos critérios para justificar isso? Os diálogos em redes sociais sobre o sacrifício do cão eram do tipo: “entre a vida de um humano e a de um cão, sem dúvida a do humano”, “sacrificaria todos os cães a fim de salvar um humano”. O nosso nível de discussão a respeito é bastante sórdido e ignorante. Não podemos generalizar uma resposta, depende de qual humano e de qual cão.
E é com o mito da sacralidade da vida humana que subjugamos outras formas de vida por considerá-las inferiores ou de menor importância. A nossa existência é a que vale a pena manter a todo custo e nos custa muito ver a diferença entre o mero feito biológico de viver, e o de levar uma existência plena.
Penso na impotência dos ativistas nas portas do domicílio para impedir o sacrifício, penso na dor do marido da enfermeira ao saber que um membro da sua família lhe foi cruelmente arrancado pelo sistema de saúde espanhol, o mesmo para o qual ela trabalha, na mulher, que por atender um infectado recebe em troca não só colocar em risco a sua saúde – implícito na sua profissão – mas a morte provavelmente desnecessária do seu companheiro não humano, e penso no Excalibur, que ao ver humanos entrarem na residência onde estava há várias horas sozinho, balançou o rabo, e com esse olhar com o qual os cães te mostram a alma, não imaginou que lhe dava as boas-vindas uma morte cautelar.