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Manifesto pelos animais ou porque sou contra a interseccionalidade

4 de dezembro de 2015
5 min. de leitura
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Parece que virou moda entre os ativistas em geral esperar que o veganismo seja o movimento-base na produção de espaços de intersecção com os movimentos de direitos humanos, ideia sedutora à primeira vista, posto que parece procurar pela justiça em todas as suas dimensões. Porém, considerando o escopo ideológico que envolve esse conceito, conforme exporei adiante, antecipo três questionamentos que faço a essa proposta:

  • como essa preocupação se relaciona com o veganismo?
  • qual visão de mundo contempla este conceito?
  • há interesse para os animais que o veganismo adote o discurso interseccional?

Antes de entrar nas questões propostas em si, importante colocar que tomo como premissa que a história humana é uma história de conflitos, a civilização como foi forjada roubou do ser humano sua capacidade animal de viver em harmonia com o meio e a história da razão se tornou a história do poder e da violência. Forjado pela opressão, o ser humano, como espécie, coletivamente, tende à violência, basta observar que os movimentos revolucionários mais importantes em prol de igualdade descambaram absolutamente todos em regimes totalitários, portanto, gostando ou não, essa é a cultura que compõe nossa humanidade atualmente, com requintes de indiferença reforçados pelo consumismo e individualismo de nossa época. Triste, mas esse é o material humano com que lidamos hoje enquanto movimento.
Diante deste cenário, se a interseccionalidade soa sedutora porque parece resolver numa única tacada todos esses sistemas de opressão criados no decorrer de nossa história, vale lembrar que o conceito surgiu nos anos 1970 como método proposto pelas feministas à sociologia, com o objetivo de compreender como se correlacionam os diferentes tipos de opressão dentro de um mesmo sistema (exemplo clássico são os estudos sobre machismo dentro do movimento negro empreendidos por mulheres negras).
Aqui esbarramos em minha primeira objeção à interseccionalidade: o que têm os animais não humanos em comum com os animais humanos oprimidos? Fora o fato que todos são vítimas de mesmo sistema opressor, no qual estamos todos inseridos e por isso não constitui uma especificidade, não há nada que os defina como sujeitos comuns para intersecção: enquanto as vítimas defendidas pelos direitos humanos estão em sua maioria entre nós, com plena capacidade de usar ativamente a sua voz (o papel dos movimentos, ao que me parece, é dar visibilidade a isso), os sujeitos do veganismo estão escravizados, confinados e torturados em espaços onde suas vozes não podem ser ouvidas e isso faz toda diferença na percepção da sociedade em relação às suas vítimas (por isso, o que vemos normalmente, inclusive entre ativistas de direitos humanos, é o desprezo pelos interesses dos animais sempre que estes esbarram com os dos humanos, nada diferente do especismo bem-estarista).
O veganismo não luta por expansão de direitos, como os demais movimentos, mas pela abolição da escravidão animal; diferente do machismo e do racismo, por exemplo, não basta aos ativistas saírem enfrentado o especismo, mas estamos ainda em fase de contar às pessoas que este preconceito existe e muitas vezes saímos desacreditados destes debates, inclusive com ativistas de direitos humanos (muitas vezes especialmente com estes, já que suas bases de argumentação em relação ao veganismo em geral é o racionalismo antropocêntrico).
Vale ainda lembrar que a interseccionalidade como é proposta hoje está claramente alinhada à visão pós-moderna da realidade, onde diluem-se todos os conflitos e relativizam-se todas as verdades. Por isso, não adianta esperarmos que compreendam que direitos animais não é questão de jornada pessoal, de consciência individual, de respeito ao tempo de cada um se nos alinhamos à visão pós-moderna dos movimentos: é esperar dos indivíduos uma postura não condizente com a ideologia que os rege. A relativização da verdade, a queda da noção de poder, hegemonia, ideologia, realidade como condição material concreta para a mudança são característicos da pós-modernidade, base ideológica do discurso interseccional. Portanto, incoerência nossa, não deles, esperar que alinhados ao discurso interseccional consigam abranger noções como realidade concreta, direitos coletivos, conflitos ideológicos, necessários para compreensão de uma abordagem crítica e abolicionista dos direitos animais.
Parece, diante disso, ficar fácil notar que os animais não ganham absolutamente nada em adotarmos no veganismo uma postura interseccional, especialmente por suas características ideológicas deletérias para a conquista de direitos de primeira geração (vida, liberdade, integridade, dignidade).
Entendido que a interseccionalidade contempla movimentos que pleiteiam a expansão de direitos de uma perspectiva pós-moderna, supostamente isenta de conflitos (condição impossível se observarmos na história sua constante correlação de forças) e que o veganismo atua em função do fim da escravidão animal, situação que não ocorrerá sem embates com os privilégios impostos pelos humanos sobre as demais espécies, criando sobre elas suas tradições e culturas tão valorizadas por esses movimentos especistas de direitos humanos, abraçar essa postura é trazer sim para o movimento dos direitos animais as demandas de seus opressores, através de uma visão de mundo que não serve para a abolição dos animais, para o confronto contra um sistema escravista. Portanto, falar em interseccionalidade no veganismo me soa tão especista quanto realmente parece ser um movimento baseado na subjetividade dos humanos.
Em poucas palavras, faço uma metáfora do que ouço quando alguém me interpela sobre adotarmos o discurso interseccional: é como uma feminista chegar a uma mulher espancada e dizer a ela que deve sair daquela situação, mas antes deve educar o companheiro para se libertar também das opressões que sofre por ser machista, é dizer a essa mulher que ela só pode abandonar ou confrontar esse homem depois que ele aprender a fazer a própria comida, lavar a própria roupa e aprender a viver sóbrio, porque, né, ele sofre tanta opressão no mundo do trabalho ou por outro motivo qualquer que não é justo que a feminista se preocupe apenas com a mulher que ele espanca.
O fim da escravidão contra os negros não libertou as mulheres do patriarcado, a conquista de direitos pelas mulheres não derrubou o sistema capitalista e não porque esses movimentos fossem elitistas ou não se importassem com os demais, mas porque a condição de suas vítimas era tão urgente que não fazia sentido esperar que o mundo fosse um lugar mais justo para que elas parassem de sofrer.
Para mim, essa é a diretriz do veganismo, tolerar menos que isso é ser condescendente com o opressor e o especismo do qual se alimenta. Veganismo para os animais e pelos animais não humanos sempre, não faremos isso caindo na roda das relativizações tão aclamadas pelos interseccionais pós-modernos.

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