“The Cove,” documentário ganhador do Oscar sobre a pesca de golfinhos no Japão, pareceria ser um candidato ideal aos cinemas daqui. Porém, a distribuidora ainda não encontrou nenhuma sala para exibir o filme. Se Shuhei Nishimura e seus compatriotas da ala nacionalista do Japão tiverem sucesso, nenhuma sala jamais o exibirá.
Num país que treme em desarmonia e permanece cauteloso em relação ao histórico de violência da extrema direita, os comícios de ativistas, as difamações online, os telefonemas intimidantes e as ameaças veladas de violência estão forçando os cinemas a cancelar as projeções de “The Cove” – que não só retrata a caça aos golfinhos numa perspectiva desfavorável, mas também adverte sobre os altos níveis de mercúrio nos peixes, revelação perturbadora para um país apaixonado por frutos do mar.
Esse é, também, um exemplo absoluto de como o debate público sobre temas considerados delicados aqui pode ser facilmente abafado por uma pequena minoria, a mais ativa delas sendo os dez mil direitistas que sustentam posições de linha-dura em disputas contra vizinhos de Tóquio.
Outras áreas que foram eficientemente transformadas em tabu pela direita incluem a família real japonesa, os direitos para minorias étnicas, a ocupação de Tóquio em partes da Ásia no último século, o papel do país na Segunda Guerra Mundial e os grupos do crime organizado, muitos dos quais possuem estreitas ligações com a extrema direita.
Grupos como a Sociedade Nishimura pela Restauração da Soberania, que possui apenas um punhado de membros principais, recentemente assumiu como missão combater as críticas nacionais de práticas como a pesca de baleias e golfinhos.
Em inúmeras manifestações, os membros da sociedade argumentaram que as caçadas são tradições japonesas honradas que precisam ser protegidas da condenação ocidental, e “The Cove” passou a ser seu alvo número um.
“Se você orgulho de seu país, não exiba este filme”, urrou Nishimura pelos alto-falantes, num protesto diante do Yokohama New Theater, com cerca de 50 manifestantes empunhando cartazes e bandeiras do sol nascente. “Você envenenaria a alma do Japão?” “The Cove” traz cenas, muitas delas filmadas furtivamente, de pescas de golfinhos na vila de Taiji, sudoeste de Tóquio.
Um grupo de ativistas comandados por Ric O’Barry, que treinou golfinhos para a série televisiva “Flipper”, testemunha as violentas caçadas numa lagoa isolada, onde pescadores encurralam golfinhos, selecionam alguns para capturar vivos e usam arpões para matar os restantes, deixando a lagoa vermelha de sangue.
As matanças, segundo os ativistas, são estimuladas por um lucrativo comércio de golfinhos vivos para aquários, além de um mercado local para a carne do animal – que está contaminada com mercúrio.
A pesca comercial de baleias foi criminalizada mundialmente em meados dos anos 1980, mas a proibição não cobre mamíferos marinhos menores, como os golfinhos. O Japão mata cerca de 13 mil golfinhos por ano, de acordo com a Fisheries Agency, dos quais aproximadamente 1.750 são capturados em Taiji. A maioria dos animais mortos nessa região é conhecida como golfinhos-comuns, que não estão em extinção.
O filme gerou reações também nos Estados Unidos, embora de um tipo bem diferente. Após algum trabalho de dissimulação pelos produtores do filme – programado para coincidir com a cerimônia do Oscar -, investigadores invadiram em março um restaurante japonês em Santa Monica, na Califórnia, e acusaram seus proprietários de servir carne da baleia-sei, espécie em extinção. Depois de um pedido de desculpas, o restaurante logo fechou suas portas, aparentemente num ato de haraquiri gustativo.
Defensores da livre expressão encorajaram os cinemas a resistir às ameaças e exibir o documentário, realizado pelo cineasta norte-americano Louie Psihoyos. Muitos japoneses não sabem que as pescas de golfinhos ocorrem aqui, onde o consumo de carne de golfinho é raro, e críticos afirmam que já está na hora de um debate público.
Alguns negócios estão resistindo à pressão dos nacionalistas. A empresa de internet Niwango planeja uma exibição gratuita do filme, mesmo que para apenas dois mil espectadores. Ainda assim, três cinemas cancelaram suas exibições do filme no começo de junho, depois que o grupo de Nishimura advertiu, em seu site, que realizaria manifestações do lado de fora de dois cinemas no centro de Tóquio. Outros vinte e três ainda estão considerando se exibem ou não o filme. Nenhum cinema o colocou em cartaz.
Yoshiyuki Hasegawa, gerente do Yokohama New Theater, disse que estava adiando as projeções do filme. “É claro que isso me incomoda”, afirmou ele, “mas preciso pensar nos problemas que isso traria aos meus vizinhos”.
Embora o filme não tivesse sido programado para um grande lançamento no Japão, os organizadores agora temem que a projeção simplesmente nunca aconteça. “Eu tinha uma sensação de missão”, disse Takeshi Kato, presidente da distribuidora do filme no Japão, a Unplugged. “Já sabia, no momento em que assisti ao filme, que esse era um assunto sobre o qual os japoneses precisavam ver e pensar profundamente”.
Há dois anos, protestos nacionalistas fizeram com que alguns cinemas cancelassem projeções de um documentário, realizado por um cineasta chinês, sobre o Santuário Yasukuni, um controverso memorial de guerra que honra os japoneses mortos em guerras, incluindo criminosos de guerra.
“Todos estão com muito medo”, disse Tatsuya Mori, autor e diretor que tem sido um crítico especialmente aberto dos protestos da extrema direita – e dos cinemas, por recuar tão rapidamente. “Os japoneses tendem a imaginar cenários pessimistas, mas precisamos nos lembrar de que eles são, na verdade, um número muito pequeno de pessoas”, disse ele.
O temor público em relação à extrema direita é derivado de rompantes de violência ao longo dos anos que, quando isolados, permanecem profundamente gravados na mente nacional. Houve o assassinato em 1960 de um legislador socialista, Inejiro Asanuma, por um simpatizante da extrema direita com uma espada, por exemplo, e o ataque – no ano seguinte – ao presidente da Chuokoron, a editora de uma revista que publicava uma sátira da família real.
Em 2006, um direitista incendiou a casa de um membro do parlamento, depois que este criticou as visitas do primeiro-ministro Junichiro Koizumi ao Santuário Yasukuni. No mesmo ano, um grupo de direita arremessou uma bomba incendiária nos escritórios do “The Nikkei”, um importante jornal diário, depois que foram publicados relatos sobre a opinião do imperador sobre o santuário.
A mais recente campanha direitista foi uma das mais resolutas até hoje, embora existam evidências de que o interesse público no filme tenha aumentado com a cobertura da mídia sobre suas dificuldades no Japão. Mais de 700 pessoas se amontoaram para comparecer a uma projeção única no centro de Tóquio, organizada por defensores da liberdade de expressão. Cerca de 100 pessoas ficaram de fora por falta de espaço.
“Estou contente por ter visto”, disse Tamaki Iijima, um construtor de 53 anos de Saitama, oeste de Tóquio. “Vivemos numa sociedade que esconde as coisas sujas. Ficar sabendo é um primeiro passo muito grande”.
Fonte: Yahoo Notícias