Em 2019 e 2020, a exportação de bois vivos condenou mais de 800 mil animais ao sofrimento dentro de navios. Levados para países do Oriente Médio e do Norte da África, a maior parte dos bois partiram do Porto de Vila do Conde, no Pará.
Conforme relatado pela entidade Mercy For Animals (MFA), o Pará é o estado brasileiro que mais exporta bois vivos e é líder em taxas de desmatamento da Amazônia. Durante o transporte, os bois são “confinados em navios que muitas vezes não foram construídos para essa finalidade, em espaços minúsculos e em condições insalubres” após serem criados em fazendas localizadas, em sua maioria, em cidades do Pará.
“O estado é o maior exportador de animais vivos do país e pelo menos três de seus municípios com atividade pecuária figuraram entre os campeões de desmatamento da Amazônia nos últimos dois anos. Em 2019, o estado desmatou 48% da área verde de floresta do bioma, em 2020, 42%, e nos últimos dois meses deste ano bateu recorde de desmatamento”, informou a MFA.
Focada na proteção e defesa de animais explorados para alimentação, a instituição decidiu lançar um manifesto pelo fim da exportação de animais vivos no Brasil. O intuito é “extinguir o sofrimento dos animais exportados vivos nessas péssimas condições e ajudar a conter o avanço da pecuária nas áreas de conservação da Amazônia”.
Vice-presidente de Investigações da MFA, Luiza Schneider citou o longo trajeto realizado pelos navios durante as viagens de exportação de animais vivos. Dentro das embarcações, os bois sofrem por semanas. “Os animais exportados sofrem ao extremo, pois são mantidos confinados em navios por semanas, sendo obrigados a deitar sobre as próprias fezes e urina, além de serem brutalmente mortos nos países de destino. Não podemos aceitar mais isso. Temos que banir essa prática terrível”, disse.
Em 2019, a Mercy For Animals lançou uma petição para pressionar pela aprovação do Projeto de Lei 357/2018, que tramita na Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal. A proposta prevê a proibição da exportação de animais vivos para consumo humano “e destaca o crescimento dessa atividade nos últimos anos no Brasil, trazendo à discussão as condições de sofrimento extremo a que são submetidos os animais transportados e a poluição decorrente do lançamento dos dejetos animais sem tratamento no meio ambiente”.
Até o momento, mais de 450 mil pessoas aderiram à petição. A MFA revelou ainda que, após encomendar uma pesquisa ao Instituto Ipsos, descobriu que 84% dos brasileiros concordam que a exportação de animais vivos para consumo humano deve ser proibida no Brasil. “No Rio de Janeiro e em São Paulo também tramitam dois projetos que visam à proibição da prática e ambos aguardam votação nas respectivas Assembleias Legislativas”, relembrou a instituição.
O desmatamento causado pela exportação de animais vivos
Além da crueldade intrínseca à exportação de animais vivos, essa prática também colabora para o aumento do desmatamento. “A exportação de animais vivos apresenta um risco de desmatamento significativamente maior do que a exportação de carne bovina porque está fortemente concentrada no estado amazônico do Pará. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), a pecuária é a principal causa de desmatamento na Amazônia”, citou a MFA.
“Entre 2016 e 2020, cerca de 24% das exportações de bois vivos no país partiram de Abaetetuba, município a 50 km do Porto de Vila do Conde e onde estão localizadas as quatro estações de pré-embarque da Minerva, a maior empresa exportadora de animais vivos no Brasil. Entre 2015 e 2017, as exportações paraenses representaram 97,9% das exportações oriundas do bioma amazônico e 71,2% das exportações de bovinos vivos do Brasil em volume. Nesse mesmo período, a maior parte dos bovinos vivos exportados pelas quatro maiores empresas exportadoras do país foi fornecida por fazendas paraenses”, continuou.
De acordo com dados divulgados pela MFA, as fazendas que fornecem bois vivos para exportação da Minerva no Pará estão situadas em 81 cidades, das quais 30 estão entre as 100 que mais desmataram a Amazônia desde 2008. “Nesses 30 municípios foram derrubados mais de 30 mil quilômetros quadrados de florestas nativas entre 2008 e 2020. Isso representa 33,8% de todo o desmatamento acumulado na Amazônia e 76,5% de todo o desmatamento acumulado no Pará no período”, comentou.
“São Félix do Xingu é o segundo município com maior área desmatada na Amazônia desde 2008 e o que concentra a maior população de bovinos do Brasil, além de ser o maior emissor de gases de efeito estufa no país. Fazendas do município forneceram bovinos para as quatro maiores empresas exportadoras de bovinos vivos do país. Vale ressaltar que o Pará foi o estado com maior área sob alerta de destruição florestal: 211 quilômetros quadrados, equivalente a 36% do total registrado até 29 de abril deste ano. O Amazonas ficou em segundo lugar, com 175 quilômetros quadrados. Os dados são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que registrou, em abril deste ano, o segundo maior recorde consecutivo de desmatamento da Amazônia. Em abril, a Amazônia perdeu 581 quilômetros quadrados de sua cobertura vegetal (43% acima dos valores desmatados em 2020), o maior índice de desmatamento no mês de abril desde 2016”, acrescentou.
Tamanha exploração animal levou o Brasil a ser pioneiro na América Latina na exportação de bois vivos para consumo por via marítima. Entre 2012 e 2020, foram 2,6 milhões de bois vivos exportados, sendo 86,9% destinado ao Oriente Médio e ao Norte da África, 42,1% para a Turquia e 44,8% para Egito, Líbano, Iraque, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes. “A maior parte dos animais exportados teve como origem portos dos estados do Pará, com 66,4% (1,774 milhões), Rio Grande do Sul (535.096), com 20%, e São Paulo, com 8,3% (222.692)”, citou a ONG.
Em 2019, o Brasil conquistou o lamentável título de segundo maior exportador de bois vivos por via marítima do mundo. Foram 499.688 animais submetidos a condições degradantes ao serem exportados. Também foi considerado o maior fornecedor de bois vivos para o Oriente Médio, ainda em 2019, quando cerca de 380 mil animais foram exportados. No mesmo ano, o país foi o segundo maior fornecedor de bois vivos para o Norte da África, com aproximadamente 100 mil animais transportados.
Durante cinco anos consecutivos, entre 2015 e 2019, o Brasil esteve no ranking dos 10 maiores exportadores de bois vivos do mundo, com uma média de 413 mil animais vivos exportados por ano ou mais de 2 milhões em todo o período. “Entre os maiores exportadores de bovinos vivos do Brasil estão as empresas Minerva, a Agroexport Trading e Agronegócios, a Mercúrio Alimentos e a Wellard do Brasil. Juntas, essas quatro empresas foram responsáveis por 81,4% das exportações de bovinos vivos no Brasil entre 2015 e 2017, sendo a Minerva a responsável pela maior parte dos animais (47,6% ou cerca de 375 mil animais)”, citou a Mercy For Animals.
“O extremo sofrimento animal é intrínseco à exportação marítima”
De acordo com a MFA, a exportação de animais vivos no Brasil é realizada majoritariamente por via marítima, com embarque principalmente no Porto de Vila do Conde, na cidade de Barcarena, no Pará, e o “extremo sofrimento animal é intrínseco a esse tipo de exportação, que implica o confinamento intenso dos animais por períodos longos, em sua maioria em navios antigos e não projetados originalmente para o transporte de animais vivos, mas que foram adaptados para transportá-los no convés, onde eles ficam expostos às condições climáticas (sol, chuva e ventos fortes, entre outras intempéries)”.
“As viagens em navios costumam durar mais de um mês e os bois são confinados em ambientes hostis e artificiais, viajam amontoados e sem espaço para se movimentarem. Nesse período, são obrigados a viver em condições insalubres, tendo que deitar sob suas próprias fezes e urina, muitas vezes em ambientes sem ventilação adequada. Cada boi embarcado tem em média 1,55 m² de espaço, o equivalente a uma porta convencional com largura de 77 cm por 2,10 cm de altura”, citou.
“Sem contar as longas viagens terrestres entre as fazendas, localizadas em sua maioria nos municípios da Região Norte, e os portos. Os bois vivos são transportados em caminhões por estradas de chão, em rodovias com péssima condição de conservação, e muitas vezes fazem até mesmo travessia em balsas. Nessas viagens terrestres, feitas em caminhões também com pouco espaço, os animais sofrem estresse e desconforto, além de privação de alimento e água por muitas horas”, completou.
Para expor os horrores da agropecuária, a Mercy For Animals realizou investigações que mostraram animais sendo esfaqueados e mortos ainda conscientes, sentindo dores terríveis nos países de destino. Embora a forma como os animais são mortos no Brasil também seja cruel, a que é realizada nos países que compram animais vivos é ainda pior e seria considerada ilegal se fosse feita em território brasileiro, além de contrariar as recomendações da Organização Internacional de Saúde Animal.
Os problemas da exportação de animais vivos, no entanto, vão além. Isso porque incidentes aumentam ainda mais o sofrimento ao qual os bois são submetidos. “Pelo menos quatro incidentes graves foram relacionados à exportação de bois vivos no Brasil. Dois deles aconteceram com navios que transportam os animais. Em fevereiro de 2012, o navio Gracia Del Mar, de bandeira panamenha, teve uma pane no sistema de ventilação quando estava em alto-mar, o que provocou a morte de mais da metade (2.750) dos 5.200 bois por asfixia. Os animais foram embarcados no Porto de Vila do Conde, em Barcarena, no Pará, e tinham como destino o Egito”, relembrou a MFA.
“Em novembro de 2015, o navio MV Haidar, de bandeira libanesa, virou e afundou na doca do Porto de Vila do Conde. Os 5.000 bois embarcados foram fornecidos pela Minerva. A maior parte morreu afogada e não chegou à Venezuela. Os corpos dos animais mortos e o vazamento de óleo do navio provocaram um dos maiores desastres ambientais daquela região. A previsão é de que a estrutura do navio comece a ser resgatada neste ano”, continuou a instituição, que lembrou ainda que ambos os navios não foram originalmente projetados para o transporte de animais vivos, pois eram navios porta-contêineres.
“O navio Haidar acumulava 21 anos de serviço quando afundou e o navio Gracia Del Mar, hoje chamado Yosor, acumulava 31 anos de serviço em 2012, quando sofreu a pane”, informou a Mercy For Animals. “Em fevereiro de 2018, o acúmulo de fezes e urina dos 27 mil bois embarcados no navio MV Nada, com destino à Turquia, causou poluição ambiental na cidade de Santos (SP). Os animais pertenciam à empresa Minerva, que foi multada por infração ambiental e maus-tratos a animais. O incidente mobilizou a Câmara Municipal de Santos, que aprovou uma lei proibindo o transporte de animais vivos nas vias municipais, o que acabou por inviabilizar esse tipo de exportação pelo Porto de Santos”, relatou a entidade, que citou ainda outro incidente ocorrido em maio de 2019 na estação de pré-embarque Fazenda Morada da Lua, próxima à cidade de Abaetetuba, no Pará, e de propriedade da Minerva.
“A fazenda tem capacidade para abrigar até 27 mil animais e foi embargada pela Justiça por despejar dejetos dos bois confinados no rio Curuperé. O rio foi contaminado e causou danos à saúde e à subsistência dos moradores da comunidade de Curuperé-Grande, localizada na divisa entre as cidades de Abaetetuba e Igarapé-Miri. As atividades da Fazenda Morada da Lua seguem suspensas, assim como três outras estações de pré-embarque pertencentes também à Minerva, localizadas em Abaetetuba”, comentou a MFA, que foi fundada há mais de 20 anos nos Estados Unidos e está presente no Brasil desde 2015. Maior organização sem fins lucrativos do mundo dedicada a combater a exploração de animais para consumo, especialmente em fazendas industriais e na indústria da pesca, a MFA trabalha para transformar o atual sistema alimentar e substituí-lo por um modelo que seja mais compassivo com os animais e garanta um futuro melhor para o planeta e todos que o habitam. Atualmente, a Mercy For Animals também opera em outros países da América Latina, no Canadá e na Índia. Acesse o site oficial da entidade para saber mais.
ANDA move ações contra exportação de animais
A Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) entrou com duas ações contra a exportação de animais. A primeira, feita em conjunto com a Associação de Proteção Animal de Itanhaém (AIPA), solicitou a interrupção das operações no porto de Santos com base nas implicações ambientais e nos crimes de maus-tratos registrados durante o embarque feito pelo porto em dezembro de 2017.
O pedido das entidades foi aceito pelo desembargador Luis Fernando Nishi, que determinou a suspensão imediata das operações no porto no final de janeiro deste ano. Dias depois, entretanto, a liminar foi derrubada por um recurso impetrado pela Advocacia Geral da União (AGU) e o navio seguiu viagem.
A segunda ação, movida exclusivamente pela ANDA, foi contra os embarques de animais vivos no porto de São Sebastião. Devido à existência de outras duas ações contra tais operações no porto que tinham como foco os maus-tratos contra os animais, a ANDA optou por usar o enfoque ambiental como fundamento para se opor à exportação de animais vivos em São Sebastião.
Após a ação ter extraviado, a ONG impetrou um mandado de segurança solicitando o julgamento da liminar. O mandado foi deferido pelo juiz Dr. Guilherme Kischner que, em abril, suspendeu temporariamente os embarques no porto.