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ESPÉCIE DE COURO

Maior tartaruga-marinha do mundo é flagrada desovando em praia da Reserva de Comboios (ES)

18 de dezembro de 2024
11 min. de leitura
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Foto: Bernardo Bracony

Rara e imponente, a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) pode ultrapassar dois metros de comprimento e pesar mais de 700 kg, garantindo seu título como a maior tartaruga do planeta. O g1 foi até o litoral Norte do Espírito Santo para acompanhar o trabalho de pesquisadores em busca dessa gigante dos mares e registrou a chegada de uma tartaruga para a sua desova na madrugada do dia 2 de dezembro.

A expedição também resultou em uma série de reportagens que vai ao ar desta quarta-feira (18) até sexta-feira (20). Com a participação de especialistas, como biólogos e oceanógrafos, o g1 destaca os detalhes dessa espécie, o trabalho realizado pelos pesquisadores e a relação com a comunidade local. Além disso, conversou com nativos que costumavam consumir a carne e os ovos das tartarugas.

Até quem estuda este animal há mais de 40 anos se emociona quando consegue encontrar esse animal marinho mais ameaçado do país.

“É sempre uma emoção. A gente volta no tempo, imagina que esse bicho tem milhões de anos habitando esse planeta e chegou em um estágio de ameaça muito grande, é o animal marinho mais ameaçado do Brasil e depende das nossas ações para continuar sobrevivendo. O meu sentimento é de estar contribuindo com a continuidade dessa vida, para a sociedade, principalmente, para os capixabas entenderem que existe essa terra de gigantes aqui no norte do estado”, declarou Joca Thome, oceanógrafo e coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação das Tartarugas Marinhas e Biodiversidade do Mar do Leste do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

No Brasil, a principal região de desova escolhida pela tartaruga-de-couro é no Norte Capixaba, principalmente nas praias de Regência e Povoação, nos municípios de Linhares e Aracruz, área abrangida e protegida pela Reserva Biológica de Comboios, gerida pelo ICMBio.

“É uma área que elas sempre desovaram e com a criação desta área protegida a gente conseguiu evitar muitas intervenções humanas que acabam afastando as tartarugas, como a especulação imobiliária e iluminação. Por se tratar de uma área protegida encontram as condições ideais para continuar reproduzindo aqui”, explicou o chefe da Reserva Biológica de Comboios Antônio de Pádua.

Expedição flagra desova

Durante duas noites, a equipe de reportagem acompanhou o trabalho de pesquisadores pelos 37km de área monitorada de praia na Reserva de Comboios.

Foram mais de 15 horas percorrendo a areia em caminhonete e quadriciclos, em baixa velocidade, em horários que variaram entre 21h e 4h, para flagrar uma fêmea da espécie gigante.

E no melhor momento dessa aventura foi possível presenciar a gigante do mar, tranquila, nas areias da praia, ainda se preparando para começar a desova.

Já passava da 2h, quando um grupo de pesquisadores encontrou a espécie na parte Sul da extensão da área e comunicou aos demais membros da expedição.

O g1 chegou a tempo de mostrar a tartaruga se ajeitando no local escolhido, até colocar os ovos e ir embora ganhando a imensidão do mar em meio a escuridão total da praia.

A partir do momento em que o animal é avistado, luzes vermelhas precisam ser usadas, condição ideal para o conforto das tartarugas, segundo os especialistas.

Pente fino pela praia

O trabalho acontece com os pesquisadores se dividindo pelas regiões Norte e Sul da praia, se comunicando continuamente via rádios e celulares. A busca não pode ser feita por muitas pessoas ao mesmo tempo e nem com auxílio de luzes artificiais, para não alterar ou assustar os animais.

A orientação tanto para os olhos treinados como para os iniciantes é procurar pelo rastro do animal no sentido perpendicular à linha da água, que é mais fácil de ser identificado à distância do que a tartaruga em si.

Em alguns momentos, foram encontradas as chamadas ‘meia-lua’, nome dado ao rastro na areia, quando a fêmea sai e retorna para o mar, sem botar os ovos.

Já em outros, o flagrante da desova é perdido e apenas a areia remexida é encontrada, demonstrando que a tartaruga esteve ali e concluiu a missão sem ser observada. Ainda assim, o ninho é demarcado pelos pesquisadores.

Criticamente ameaçada

A espécie também é classificada como ‘criticamente ameaçada’ no mundo. Os pesquisadores disseram que não é possível estimar a população para tartaruga gigante.

“É uma conta que não é fácil fazer. A gente consegue calcular o número de fêmeas que colocam os ovos, mas não temos números totais”, ponderou o biólogo Alexsandro Santos, pesquisador da Fundação Projeto Tamar e coordenador de pesquisa e conservação no Espírito Santo.

O trabalho de pesquisa no Espírito Santo é feito com monitoramento das praias, marcação dos animais avistados e com o auxílio de aparelhos de comunicação via satélite.

Em 2024, sete fêmeas receberam o equipamento, desde setembro, mês em que começa a temporada de desova, até dezembro, quando o período termina.

E é a partir desse mapeamento minucioso realizado e com entendimento da rotina dos animais que os especialistas da Fundação Projeto Tamar estimam que cerca de 20 animais da espécie passem pela área de praia protegida no estado este ano, ao fim desses quatro meses.

O número pode aparentar ser pequeno, mas é motivo de otimismo em relação a anos anteriores.

“Em 2023, estimamos que 12 fêmeas desovaram no Espírito Santo. Se este ano já estamos em torno de 20, estamos falando de um aumento considerável, de mais de 60%. Para uma população tão pequena, faz muita diferença”, avaliou Alex.

Até a publicação desta reportagem, 100 ninhos da Dermochelys coriacea foram demarcados na área da Reserva de Comboios, o número se deve ao fato de, cada fêmea, voltar cerca de cinco vezes à areia para desova, a cada 10 dias.

A gigante pelo mundo

Além do litoral Norte capixaba, uma pequena população de tartarugas-de-couro já foi identificada na Foz do Delta do Rio Parnaíba, no Piauí, mas ainda está sendo estudada e avaliada.

O tamanho dos exemplares encontrados até o momento é menor do que os das praias capixabas e não há frequência anual como no Espírito Santo, onde o aparecimento é regular na região monitorada há mais de 40 anos.

Os especialistas apontam que cada fêmea volta a cada dois anos para desovar na mesma praia. E curiosamente, na fase adulta, a partir dos 14 anos, voltam para desovar no mesmo lugar em que nasceram.

No mundo, principalmente no Gabão, existe uma estimativa de mais de 5 mil fêmeas desovando por temporada. Além deste país, Trinidad e Tobago, Costa Rica, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela são os principais pontos de desova registrados.

Segundo os pesquisadores, quando as tartarugas entram no mar ainda filhotes, ficam cerca de cinco anos sem serem vistas.

A tartaruga-de-couro é a espécie que vai para os mares mais frios, enquanto as outras estão prioritariamente nos mares tropicais e subtropicais. Isso se deve a um mecanismo fisiológico de conservação de calor que possibilita a gigante alcançarem até regiões polares.

80 a 90 ovos por desova

Cinco espécies de tartarugas marinhas aparecem no litoral brasileiro. Além da tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), são avistadas a tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), tartaruga-verde (Chelonia mydas) e tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea).

Diferentemente das outras, que entram no período de reprodução por volta dos 20 anos, a tartaruga-de-couro chega a essa fase fase da vida mais cedo, a partir dos 14 anos.

O intervalo de reemigração, ou seja, a saída da área de alimentação para a área de desova, é a cada dois anos, durante 20 anos.

“Enquanto a fêmea está aqui desovando, ela faz um ninho hoje, daí a dez dias sobe e faz outro, movimento que ocorre uma média de cinco a seis vezes por temporada. Isso é chamado de intervalo internidal, entre um ninho e outro”, explicou Alexsandro Santos.

Em relação ao número de ovos, a tartaruga-gigante bota uma média de 80 a 90 ovos por desova, e o tamanho é equivalente a uma bola de sinuca.

Além dessa quantidade, a fêmea bota também até 20% a mais de ovos chamados de ‘não viáveis’. Ovos sem gema, que não geram filhotes.

Não existe uma conclusão sobre a finalidade desses ovos, mas existem algumas teorias, relacionadas à profundidade do ninho e à uma possível distração para os predadores.

“Outras tartarugas colocam os ovos a cerca de 50 centímetros da superfície da areia, no caso da gigante, os dela ficam a um metro ou mais. Então, esses ovinhos não viáveis ajudam a aumentar o espaço entre os ovos para melhorar a oxigenação e regular a temperatura.

Muitas vezes, eles também estão concentrados mais na parte superior, o que pode ser uma proteção caso um predador consiga chegar, porque aí ele comeria primeiro esses que não vão produzir filhotes”, comentou o pesquisador da Fundação Projeto Tamar.

Temperatura define o sexo

No Espírito Santo, os ovos demoram, em média, de 50 a 60 dias para eclodir, considerando a temperatura da areia, que é o fator responsável por chocar os filhotes. Em temperaturas mais quentes, os ninhos nascem mais rápido, quando está mais frio, os ninhos demoram mais para nascer.

Seguindo uma característica de répteis em geral, é a temperatura e não a carga genética que reflete na proporção sexual de um ninho. Quanto mais quente, mais fêmeas são geradas, quanto mais frio, maior a quantidade de filhotes machos.

Ao nascer, filhotes machos e fêmeas são completamente iguais, somente quando chegam próximo à idade adulta os machos desenvolvem uma cauda longa.

Desova é feita à noite

Tanto as mamães como, posteriormente, os filhotes escolhem o período noturno para desova e saída dos ninhos, para fugir do sol e de predadores. E seguem em direção ao mar orientados pela luminosidade refletida em condições naturais.

A iluminação artificial é uma das principais ameaças ao ciclo de vida das tartarugas marinhas, desorienta os animais que, fora dos seus rumos, podem sofrer com predadores, atropelamentos e desidratação.

Até para o trabalho de pesquisa, alguns protocolos foram revistos com o passar dos anos. Lâmpadas de alta potência foram substituídas por de baixa e, preferencialmente, que emitem luz vermelha, como observado em todas as imagens de flagrante de tartarugas desta reportagem.

“Durante o período de desova, o acesso às praias abrangidas pela Reserva Biológica de Comboios, durante à noite, não é permitido. Em outros lugares isso não pode ser feito, então o que a gente faz é orientar as pessoas para que caso encontrem uma tartaruga desovando não interfiram no processo. Existem regras, as pessoas não podem mexer nas tartarugas, tirar foto com flash, tocar, mexer nos ovos, entre outros. Mais do que preparar a praia para desova, a gente se prepara para desova”, explicou Antônio de Pádua.

Porcentagem de sobrevivência

Na temporada de desova 2024, até a primeira semana de dezembro, 1.8673 ninhos foram demarcados em 159 km de praia, no litoral Norte do Espírito Santo.

Dermochelys coriacea (gigante): 100
Caretta caretta (cabeçuda): 1769
Lepidochelys olivacea (oliva): 4

Somando os rastros identificados, cascas de ovos encontradas e abertura dos ninhos, a estimativa é que 6.668 filhotes já tenham nascido, processo que vai continuar ocorrendo até o final março de 2025.

Apesar da quantidade expressiva de filhotes, a porcentagem de sobrevivência é de 0,1 a 0,2%, ou seja, 1 a 2 filhotes a cada 1.000 nascidos chegam à idade adulta.

Desova de outras espécies

Durante a noite que a equipe do g1 acompanhou o trabalho de pesquisa da Fundação Projeto Tamar, além de uma fêmea da tartaruga-de-couro, pelo menos cinco tartarugas cabeçudas foram avistadas.

Encontrar essa espécie também é de encher os olhos. Todas tinham mais de um metro de casco e mais de 200 kg. Números expressivos quando não comparados à ‘colega’ gigante.

Mais simpática e ágil, apenas uma das fêmeas cabeçudas não estava identificada com uma placa numérica, procedimento que foi feito na hora pelos pesquisadores.

A média de ovos por intervalo internidal dessa espécie é de cem unidades, e eles são menores, com tamanho aproximado a uma bola de tênis de mesa.

Tartaruga morta em Aracruz

No dia 18 de novembro, circulou pelas redes sociais um vídeo de uma tartaruga-gigante encontrada morta por pescadores, na praia de Barra do Riacho, em Aracruz. É o único registro de exemplar morto da espécie em 2024.

De acordo com o biólogo, via de regra, as tartarugas encontradas mortas em qualquer região do litoral brasileiro são fêmeas adultas, capturadas pela pesca ainda sem desovar.

“Elas são encontradas mortas com ovos, ou seja, elas ainda iriam desovar, isso é uma perda biológica muito grande. E o principal motivo dessa mortalidade é a pesca, ainda existe em alguns lugares um conflito de uso de área pelos pescadores e as tartarugas. Então um dos papéis que a fundação tem é de procurar medidas mitigadoras que possibilitem a pesca continuar acontecendo e as tartarugas sobrevivendo”, afirmou.

A Prefeitura de Aracruz foi procurada e informou que a única área com registro de desova de tartaruga-couro é o Território Indígena de Comboios, que tem dupla-afetação com a Rebio de Comboios, e tem monitoramento realizado pela equipe do Projeto Tamar.

Não existe uma fiscalização específica para pesca e consumo da tartaruga-de-couro, e não há evidências de que atualmente isso esteja ocorrendo. No caso de um fato eventual, este pode ser enquadrado no artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998).

Em 2024, apenas uma tartaruga-de-couro foi encontrada morta no litoral da cidade. As demais são mais frequentes, até pela abundância. As causas são variadas, desde rede, resíduo plástico e contaminação da água.

Fonte: G1

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