A primatóloga americana Karen Strier, que há quatro décadas estuda os muriquis, o maior primata nativo das Américas, está preocupada com o futuro da espécie, que hoje só tem algumas centenas de indivíduos remanescentes.
Líder de um estudo de longo prazo, ela acompanha uma das populações desse macaco, na região de Caratinga (MG), que não está conseguindo se recuperar de eventos recentes que exterminaram um terço do grupo.
Tendo sido vítimas de uma seca severa e de uma epidemia de febre amarela nos últimos dez anos, o número de muriquis poderiam ter voltado a crescer nesta década, mas não voltou.
Strier afirma que o principal suspeito de estar impedindo isso é a degradação do fragmento de mata atlântica onde esses animais se encontram. Imagens em vídeo captadas por seu grupo já mostraram macacos comendo bagaços de fruta recolhidos do chão, por estarem passando fome.
Strier representa para os muriquis o que sua colega de profissão Jane Goodall foi para os chimpanzés africanos. Em sua última passagem pelo Brasil, a cientista que formou dezenas de pesquisadores na área recebeu o título de membro da Academia Brasileira de Ciências.
No encontro anual da entidade, a pesquisadora concedeu entrevista ao GLOBO e falou da importância de se estudar macacos no Brasil e dos esforços para conservar os muriquis. Leia abaixo.
– Em sua palestra no encontro da ABC a sra. falou sobre como seu campo de pesquisa se relaciona com a inteligência artificial. Como é essa ligação?
Falei sobre dois aspectos disso. Um deles se refere ao fato de que pelos últimos 40 anos eu tenho trabalhado para entender um outro tipo de inteligência. A inteligência artificial é uma maneira de processar informação e gerar novos insights, e isso é exatamente o que nós fazemos, passo a passo, estudando outra espécie. Usamos para isso algoritmos de teoria da compreensão sobre outros animais. Nós levantamos dados comparativos para construir padrões e desenvolver nossa compreensão.
Além disso, temos usado o que chamo de fontes remotas de informação por um bom tempo. Precisamos ter métodos não invasivos de pesquisar esses macacos e temos usado por exemplo coleta de amostras de fezes, que nos permitem entender seus hormônios, sua biologia reprodutiva e sua genética. O cocô do muriqui tem toda essa informação nele. Estamos usando também câmeras automáticas acionadas por movimento, que não deixa de ser uma forma de IA. É um mecanismo capaz de mostrar o que os animais estão fazendo quando nós não estamos presentes. Nós as montamos nas árvores. Usamos drones também.
– O estudo de chimpanzés na África sempre gerou muito entusiasmo pelo que pode revelar sobre a evolução humana. Os muriquis também têm esse potencial?
Uma das principais razões pelas quais antropólogos ou psicólogos estudam primatas é que, se queremos entender a evolução do comportamento humano, os melhores modelos comparativos são os outros primatas. Então existe um argumento forte pelo qual devemos analisar nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, os bonobos e os gorilas, afinal de contas eles são mais próximos de nós geneticamente. Mas a melhor maneira de entender similaridades ou diferenças que vemos entre nós nossos e essas espécies mais próximas é descer um pouco mais na ordem dos primatas e observar parentes mais distantes. Isso nos permite ver se os comportamentos analisados são comuns à maioria dos primatas ou se são específicos da linhagem que levou aos humanos.
– Uma outra espécie brasileira, o macaco-prego, tem gerado muito interesse de cientistas por conseguir usar rochas como ferramentas, como se já estivessem na idade da pedra deles. Os muriquis geram algum interesse específico em evolução humana?
Eu tenho grandes amigos estudando os macacos-prego e tenho fascínio por eles. Ao dizer que eles estão na idade da pedra estamos emprestando um termo humano e usando-o para explicar o comportamento de macacos. Mas ninguém diria que os humanos herdaram sua capacidade de usar ferramentas por estarem relacionados aos macacos-prego, porque essa relação é distante. Talvez humanos e chimpanzés usem ferramentas por compartilharem um ancestral comum próximo, mas o fato de os macacos pregos usarem ferramentas de pedra não diz respeito só à nossa ancestralidade. Ele mostra que isso é uma questão de adaptação, de desenvolvimento cerebral e de outras habilidades sociais ou ecológicas que podem surgir sob estímulo.
Os humanos vivem nessas sociedades baseadas em ligações de parentesco paterno e são patrilocais (o macho se mantém no território e as fêmeas jovens se deslocam para achar parceiros sexuais em outros grupos). Se você desce mais na árvore evolutiva você percebe, por exemplo, que os macacos-prego não vivem nesse tipo de sociedade. Mas os muriquis vivem, apesar de não usarem ferramentas. Seria muito difícil eles usarem ferramenta porque eles não têm polegares.
– A fama de ser um animal pacífico aproxima os muriquis de alguma forma do estudo da evolução humana?
Os muriquis vivem nessas sociedades conectadas por machos que nos mostram como é possível viver em grupos sociais grandes sem violência. Há questões importantes ligadas a isso. O que é preciso para isso? Como se deve reforçar suas relações sociais positivas? Como se evita conflitos? Como se vive em situações potenciais de competição?
Além disso, os muriquis têm ciclos de vida lentos e extensos. Em sociedades humanas, as meninas chegam à puberdade com cerca de 12 anos, nos muriquis é com 6 a 8 anos. Nós temos 9 meses de gestação, as fêmeas de muriqui têm 7,2 meses. E eles vivem até uns 40 anos, que era a idade que humanos atingiam em média antes da medicina moderna.
As sociedades dos muriquis são construídas levando em consideração que eles têm muito tempo para aprender, com muitas gerações sobrepostas e em grande complexidade social. Os muriquis nos dão um exemplo de outro tipo de vida social, no qual há cooperação e afiliação não só de machos para fêmeas mas entre machos e entre fêmeas. Então, eles são um modelo a se estudar. Eu gostaria que as pessoas fosse mais como eles.
– A sra. relatou que a população de muriquis estudada por seu grupo está sofrendo declínio desde 2015, depois de passar mais de uma década uma tendência de aumento. O que está causando esse problema?
Para saber isso é preciso primeiro entender o que estava fazendo essa população aumentar antes, e eu acho que eram os esforços de conservação. Em 2001, aquela região se tornou uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN), e a extração de madeira foi proibida ali, o que contribuiu para a recuperação dos muriquis.
A população começou a declinar em 2014 e 2015, que foram anos de uma seca extensa no Brasil, com incêndios florestais em todo lugar. E no ano seguinte veio a febre amarela: em seis meses perdemos 10% da população.
Depois disso, nós esperávamos a população se recuperar, o que não aconteceu. Investigando isso no longo prazo, nós constatamos que a taxa de natalidade permanecia a mesma. O que estava mudando era a taxa de mortalidade. Muitos animais estão morrendo.
Anteriormente, nós calculamos que a taxa de cada recém nascido chegar aos 10 anos de idade era de 90%. Agora a probabilidade de sobrevivência está muito menor. Mas por quê?
Analisamos clima, chuva, olhamos para tudo o que poderíamos pensar e nada explicava isso. Agora restam duas coisas que não medimos ainda. Uma delas é aumento da predação e outra, que é minha hipótese, é a degradação do hábitat.
Há estudos para a Amazônia e grandes florestas mostrando que o estresse climático pode ter impactos de longo prazo na vegetação em termos de produtividade e de diversidade na composição de espécies. Algumas espécies de planta morrem, e aquelas que sobram têm menor produtividade de flores e frutos. Ou seja, as plantas não estão muito bem, mesmo que ainda haja árvores de pé.
Minha grande preocupação é que isso é o que esteja acontecendo em Caratinga. Modelos e simulações daquilo que o hábitat nessa região vai se tornar em 10 ou 20 anos por causa da mudança climática apontam que ela vai ficar mais quente e mais seca. Isso não é uma condição boa para os muriquis.
– Vocês continuam trabalhando para melhorar a integração dos hábitats isolados com corredores ecológicos de mata?
A ideia de implementação dos corredores ecológicos que não estão formados ainda é muito importante. Isso seria uma maneira de dar aos animais uma passagem segura para chegar a lugares com condições melhores.
Eu acho que isso é a única coisa capaz de salvar os muriquis e muitos outros primatas que estão restritos a pequenos fragmentos de paisagem, porque em alguns casos o problema não é alimento, é encontrar indivíduos não aparentados para acasalar.
Nós já perdemos duas populações selvagens que conhecíamos porque as populações estavam muito pequenas e isoladas. Isso acontece porque as fêmeas deixam o grupo depois de crescer e vão embora procurar outro grupo. Se elas não encontram nenhum outro, elas acabam vivendo sozinhas ou morrendo. Ness processo elas saem da floresta, cruzam paisagens agrárias, às vezes acabam indo viver com macacos-prego. Quando nós as encontramos, levamos para programas de manejo em cativeiro ou as transferimos para outros locais.
Outro problema é que os fragmentos pequenos de mata começam a sofrer degradação, e provavelmente é isso que ocorre em Caratinga. A solução não é apenas tentar plantar mais árvores, mas tentar encontrar uma maneira de mudar os muriquis para outro lugar que tenha mais alimento. Uma maneira de fazer isso é com os corredores. Existe um grande grupo de pesquisadores mapeando as áreas importantes e trabalhando nisso. Provavelmente a solução de longo prazo para esses animais está nos corredores.
– A população que a sra. estuda está sob esse risco de ficar inviável por ser pequena demais?
A população de muriquis que eu estudo em Caratinga não está sob risco imediato de se tornar demograficamente extinta. Existem uns 200 indivíduos ali. Esse número permite ainda um bocado de intercâmbio genético, e a taxa de natalidade está constante. Então, demograficamente e geneticamente ela ainda é viável, mas eu estou preocupada. Nós tivemos esse período crítico no qual, em cinco anos, perdemos um terço da população. E se isso acontecer de novo?
A partir daí já existe o risco de ela entrar naquilo que chamamos de vórtex de extinção, um círculo vicioso em que um problema leva a outro e vai se retroalimentando, porque a população não tem um tamanho viável.
– Seu estudo em Caratinga vai continuar?
Eu tenho equipes de estudantes em campo a todo momento. Agora são três, fazendo o monitoramento básico. Um pós-doutorando está monitorando a população também com drones e câmeras automáticas.
Nós damos continuidade ao trabalho e estamos alimentando uma base de dados que depois de 40 anos ela continua a se tornar interessante. Eu só posso dizer hoje que os muriquis chegam à casa dos 40 anos porque o estudo já dura quatro décadas. Agora, com a coleta de fezes já existe tecnologia para amplificar fragmentos pequenos de DNA e tirar muita informação dali, então temos recebido mais propostas de colaboração. O estudo continua.
Fonte: Um Só Planeta