Diante de mais um desafio global de saúde pública, novamente envolvendo uma doença infecciosa emergente que transita de animais selvagens para seres humanos, é crucial enxergar as coisas com clareza, dar a elas os devidos nomes e evitar preconceitos. Por isso, esta coluna é um apelo para que abandonemos o termo “varíola dos macacos” e adotemos a expressão “nova varíola“, no mínimo enquanto a comunidade científica não formula uma designação mais precisa para a moléstia.
Parar de citar os primatas não humanos toda vez que fazemos referência à nova varíola teria, para começo de conversa, o efeito de proteger a vida de animais que não têm absolutamente nada a ver com os problemas de saúde da nossa espécie.
Acontece que, com o espalhamento preocupante da doença pelo país, a Sociedade Brasileira de Primatologia tem recebido relatos sobre agressões contra macacos e mesmo mortes dos animais por envenenamento. Um desses casos foi noticiado nesta semana, no interior paulista, pelo jornal Gazeta de Rio Preto —dois macacos-pregos apresentaram sinais de intoxicação. Não é à toa que uma organização que combate o tráfico de animais silvestres está defendendo a mudança de terminologia.
É preciso deixar claro, em primeiro lugar, que a associação entre a moléstia e os animais não passa, no fundo, de um acidente histórico, de um subproduto da maneira como a nossa espécie começou a se dar conta da existência do vírus que a causa. A questão é que a descoberta do causador da doença aconteceu em 1958, durante um surto que afetou macacos explorados em laboratório na Dinamarca.
Frise mentalmente o “em laboratório”: não sabemos se esses primatas ou seus ancestrais já estavam contaminados com o vírus em seu habitat natural. No entanto, surtos posteriores da doença, tanto na África, seu continente de origem, quanto em outros lugares do mundo, mostraram uma associação entre o agente causador da enfermidade e roedores selvagens africanos, como espécies de ratos e esquilos. Note bem: roedores, não macacos.
Até hoje não há consenso sobre qual seria o reservatório natural do vírus, ou seja, a espécie que ele provavelmente infecta há dezenas de milhares de anos ou mais, num processo de evolução conjunta de longo prazo, e a partir da qual, de vez em quando, ele salta para colonizar as células de outros animais.
Checar esse tipo de informação exige um trabalho de detetive complexo e de longo prazo. Mas as evidências disponíveis apontam para os roedores, e não para os primatas, que talvez sejam vítimas ocasionais do patógeno, assim como nós.
Seja como for, esse reservatório natural ainda desconhecido decididamente se encontra do outro lado do Atlântico, em território africano. Os macacos-pregos e as outras dezenas de espécies de primatas do Brasil estão separados de seus primos de segundo grau da África faz mais ou menos 40 milhões de anos. Ou seja, a chance de que eles carreguem naturalmente a nova varíola é mais ou menos a mesma de um coala ou um urso-polar serem reservatórios do vírus.
Outro fato crucial a destacar é que, assim como muito provavelmente ocorreu no caso da Covid-19 e está ocorrendo agora com a nova varíola, esse tipo de problema não vai desaparecer num passe de mágica. Pelo contrário: a intensificação do desmatamento, da crise do clima e do tráfico de animais em escala global tende a piorar as coisas.
Se queremos diminuir as nossas chances de encarar ainda mais problemas desse tipo no futuro, precisamos enfrentar a raiz do problema —e deixar os macacos em paz, para variar.