Baru e Caliandra são parte da natureza novamente e já fazem história no universo dos lobos-guarás. Graças à aventura de reintrodução pela qual passaram, forneceram informações importantes para que novos filhotes da ameaçada espécie também consigam voltar para a natureza.
A história de Baru começa no município de Cocos, na Bahia. Ele e mais quatro filhotes foram resgatados com cerca de 20 dias de vida e levados para o Zoológico de Brasília, que, naquele momento, era o local mais próximo com estrutura o suficiente para acolher os animais.
Imediatamente, começou-se a pensar em pôr em prática algo que só tinha sido tentado de modo estruturado, até o momento, uma única vez: o protocolo de reintrodução à vida selvagem do maior canídeo da América do Sul, atualmente estampado em nossa nota de R$ 200.
Já deve ter ficado clara a dificuldade do processo, do contrário já teria sido colocada em ação outras vezes, ainda mais considerando que estamos falando de uma espécie icônica do país e ameaçada de extinção — tida como vulnerável, segundo o ICMBio.
No caso desses filhotes, o problema já começava com a idade. Nos primeiros três meses de vida, os lobos-guarás têm cuidados parentais muito intensos. Nesse período, os pequenos dependem, observam e aprendem com os pais, segundo Rogério Cunha de Paula, biólogo e coordenador substituto do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), do ICMBio.
Isso significa que, se nesse espaço de tempo, esses canídeos se habituam com humanos, eles acabam com um comportável “domesticado”, o que prejudica as chances de uma reintrodução e sobrevivência na natureza. Baru ficou muito habituado aos seres humanos, ao ponto de vir lamber a mão das pessoas e chorar pedindo carinho.
Baru (fruto de uma árvore nativa do cerrado) tinha um grande obstáculo para voltar à natureza. E é aí que Caliandra entra na história.
Ela também era órfã e foi achada quase morta na beira de uma estrada —atropelamentos são umas das principais ameaçadas à espécie. Mas, quando foi resgatada, ela já era um filhote mais velho, que havia conseguido passar os seus primeiros meses com os pais.
“O comportamento dela é totalmente diferente. É uma loba arisca, que não confia no ser humano, que tem medo da gente”, afirma Cunha de Paula.
Caliandra poderia, então, ser uma espécie de tutora. E assim foi. “Depois que o Baru ficou só com ela, isolado do ser humano, esse bicho mudou o comportamentalmente da água para o vinho”, diz o especialista do ICMBio.
O isolamento total deles foi possível graças à construção, no cerrado do oeste da Bahia, de um grande recinto de 2.500 m² dentro de um contínuo de áreas preservadas nas propriedades privadas das Sementes Oilema, Irmãos Gatto Agro e Condomínio Santa Carmem (todos pertencentes a uma mesma família), além do trabalho feito pelo Parque Vida Cerrado, que é patrocinado pela Galvani Fertilizantes.
Nesse recinto, os animais foram somente cercados por uma tela, para que, assim, pudessem ser reconhecidos por outros lobos da região e também pudessem aprender a viver naquele local, conhecer cheiros e frutas dos arredores (a espécie é onívora).
“O lobo-guará é uma espécie territorialista, então não dá para eu treinar ele no parque e soltar ele lá onde eu quero que ele fique. O primeiro desafio foi realmente a gente encontrar uma área apta a receber dois indivíduos e ele ser aceito pelos lobos que residem naquela área, porque ele é um animal estranho que está chegando ali competindo por território”, afirma Gabrielle Rosa, coordenadora do Parque Vida Cerrado.
O territorialismo dos bichos foi filmado durante o período de adaptação, com lobos-guarás de fora e os dois animais em readaptação travando disputadas através rede de separação.
Mas não basta só conhecer as frutas da região. Para um um bicho onívoro, também é importante aprender a pegar os animais que estão nos arredores e que, para uma reintrodução bem-sucedida, necessariamente terão que fazer parte da dieta futura.
Para desenvolvimento da caça, aos poucos os jovens lobos-guarás perderam o acesso à ração e passaram a ter maior oferta de presas vivas.
Um outro ponto que pode parecer um detalhe, mas é muito importante é o dos horários de alimentação desses canídeos. Em instituições, diz Rosa, é comum que as refeições desses animais acabe seguindo o horário de funcionamento do local. Mas, na natureza, os lobos-guarás são crepusculares-noturnos. Mais especificamente ainda, a coordenadora do Parque Vida Cerrado diz que era importante habituar os dois lobinhos-guarás recém-chegados aos horários daquela região específica do cerrado do oeste da Bahia.
“As presas das quais eles vão se alimentar têm um horário mais no finalzinho da madrugada, por volta de quatro a cinco horas. Então os lobos tem que se habituar a esse horário onde a presa que ele vai comer vai estar circulando”, diz Rosa.
A ideia era, basicamente, reproduzir no recinto as disponibilidades diversas de alimentos que eles teriam na natureza, e acompanhar e documentar tudo, para conferir que as etapas estavam correndo bem.
No fim, há poucas semanas e com quase dois anos de idade, Baru e Caliandra foram devolvidos à natureza com as habilidades necessárias para sobreviverem sem auxílio de humanos.
Mas eles ainda terão alguma pequena ajuda. Trata-se de um projeto de soltura branda, então, o recinto em que passaram os últimos tempos permanecerá oferecendo água e comida —algo importante, considerando que já há registros deles (e até de outros lobos-guarás) voltando ao local para se alimentar e hidratar.
Além disso, os dois serão acompanhados por meio de colares com GPS. Graças a esse acompanhamento, inclusive, dias após a soltura, perceberam que Baru estava muito parado —antes, os animais estavam explorando as APP (Área de Preservação Permanente) e já tinham percorrido mais de uma centena de quilômetros na região. Ao irem verificar o animal, o encontraram ferido e tiveram que recolhê-lo de volta ao Parque Vida Cerrado para tratamento. Quando estiver melhor, Baru será novamente solto.
O trabalho com esses lobos-guará deve servir de base metodológica para futuras reintroduções de filhotes. Por exemplo, diz Cunha de Paula, o ideal é que o treinamento para ser um lobo-guará selvagem comece até 1 ano de idade e que a soltura ocorra até os 2 anos, quando eles chegam à idade reprodutiva.
O protocolo, apesar de agora mais refinado, deve ter várias adaptações futuras, dependendo de características e situações de cada um dos animais tratados e garantindo que o animal possa, de fato, ser solto na natureza.
Apesar de tudo ter dado aparentemente certo, o pesquisador do ICMBio apresenta outros temores e desafios para esses animais recém-libertos. Um deles é a questão de conflitos territóriais com outros lobos —as feridas de Baru podem ter sido causadas pela própria Caliandra, segundo hipótese dos envolvidos no projeto.
O outro receio diz respeito ao ser humano. “Há o medo dele ir para a estrada. É uma coisa que a gente tem trauma”, diz Cunha de Paula.
Há um esforço de conscientização de proprietários rurais da região, uma grande área produtora de soja, com avisos de que os animais foram soltos. Segundo Rosa, mesmo antes disso, já havia um processo de maior sensibilização ambiental entre as pessoas da região.
Ela exemplifica essa sensibilização com dois incêndios que atingiram o cerrado da região —o bioma é um dos que mais sofre com queimadas no Brasil.
Um deles atingiu o recinto dos lobos. As fazendas em volta, mesmo também sob os riscos do fogo, privilegiaram o combate às chamas no recinto.
Em outro caso, um dono de fazenda da região, viu um filhote de lobo-guará no meio de uma área em chamas e se arriscou para salvar o animal, conta Rosa.
Para a coordenadora do Parque Vida Cerrado, esses sinais indicam uma coisa. “Tem futuro. A gente lutar por isso e buscar esses bons exemplos [no agronegócio] para que eles possam contagiar e sensibilizar os outros”, afirma Rosa.
Fonte: Folha de SP