EnglishEspañolPortuguês

ESTRESSE POR MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Lobos-guará estressados: como a destruição do Cerrado impacta os animais?

5 de setembro de 2023
Mongabay | Marielle van Uitert
12 min. de leitura
A-
A+
Foto: Ilustração | Freepik

Na escuridão, o biólogo Rogério Cunha de Paula, que vem pesquisando o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) há 25 anos, e seu colega Ricardo Pires Boulhosa avançam pelas empoeiradas plantações de cana-de-açúcar da região nordeste do estado de São Paulo, com duas jaulas amarradas na traseira da picape. Eles mal conseguem enxergar, e se perdem com facilidade em meio ao canavial.

Felizmente, Rogério tem um GPS. Antes da meia-noite, as jaulas são instaladas, com armadilhas fotográficas, no topo de uma montanha da qual se avista a cidade de São José do Rio Pardo. Os fios de alta tensão no entorno não são obstáculo para os lobos, atraídos pelo conteúdo das jaulas: frango, bacon e sardinhas.

Com delicadeza e anos de experiência, Rogério, que é coordenador de programas do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), aprofunda um corte na madeira para que o cabo preso a ela permita que a placa de pressão funcione da melhor forma quando o lobo-guará entrar na jaula com suas longas patas.

Os primeiros passos para uma expedição bem sucedida foram dados.

Por duas semanas, uma equipe de biólogos e veterinários viajará por essa área do Cerrado para examinar o maior número possível de lobos-guará e implantar monitores de frequência cardiáca em seis animais para mapear os níveis de estresse causados por um habitat dominado pelas lavouras.

Cerrado é o habitat principal do lobo-guará, e também uma região densamente ocupada pela atividade agropecuária. Metade da vegetação nativa já foi destruída para dar lugar plantações e pastagens. À medida que o desmatamento avança, o lobo-guará é deslocado para as margens das cidades, onde tenta sobreviver numa paisagem estranha.

Pela primeira vez, os pesquisadores medirão a influência da frequência cardíaca e de outros aspectos fisiológicos relacionados à função cardíaca dos lobos-guará.

É provável que os resultados indiquem que o nível de estresse desses animais nas áreas agrícolas é maior do que o dos lobos que vivem num parque nacional. Além do estresse, que afeta a reprodução e, consequentemente, a sobrevivência da espécie, a sarna canina – provavelmente transmitida por cães domésticos – também representa uma grave ameaça à sua conservação.

Na manhã seguinte, dois outros membros da equipe estão prontos para inspecionar as primeiras jaulas. Rosana Nogueira de Moraes, pesquisador-sênior associada ao Smithsonian Conservation Biology Institute (SCBI), no estado da Virgínia, nos EUA, lidera a pesquisa e está ocupada carregando instrumentos esterilizados na picape.

Flávia Fiori, veterinária do Pró-Carnívoros (Instituto para a Conservação de Carnívoros Neotropicais), complementa a enorme quantidade de material com uma caixa de tubos de ensaio e conjuntos de roupas médicas.

À distância, vejo um grupo de espectadores curiosos numa área descampada próxima a um galinheiro. Dentro da jaula, há um belo espécime de lobo-guará fêmea. Fiquei frente a frente com esse belo animal, o maior canídeo da América do Sul.

A loba-guará, que em situações normais se alimentaria de frutas e roedores, vinha fazendo visitas a uma granja das redondezas. Diante da falta de alimento, os lobos da região têm se tornado ladrões de galinhas, o que tem causado perdas significativas entre os produtores.

Um deles perdeu 500 galinhas para um lobo-guará em poucas semanas. Embora o animal coma apenas algumas, a maioria das galinhas morre de estresse agudo. Ricardo, que também trabalha na Pró-Carnívoros, conversaria mais tarde com os fazendeiros para buscar soluções apropriadas.

Lupe, uma pioneira

Rogério e Flávia dirigem-se à jaula onde Lupe – nome que deram ao animal – produz sons altíssimos. A loba quer ir para junto de seus filhotes, que estão nas proximidades.

O som se espalha pelo vale. Faz calor e o local está cheio de mosquitos e outros insetos. Não são as condições ideais para fazer uma operação dessas. Rogério e a equipe decidem sedar Lupe e transportá-la o mais rápido possível para outro lugar, um pouco mais distante. Longe dos insetos.

Enquanto Rogério tenta distrair Lupe, Flávia injeta o sedativo. O anestésico começa a fazer efeito. Lupe boceja e se deita lentamente. Flávia fica de olho na loba enquanto eles a colocam cuidadosamente na caçamba da picape, e o comboio parte.

Num piscar de olhos, eles estão num novo lugar, a algumas centenas de metros do galinheiro. Não há mosquitos ali.

Enquanto Rogério e Ricardo montam uma tenda para fazer o procedimento num local o mais limpo possível, Rosana e Flávia se preparam. Lupe é levantada dentro da jaula para a retirada de amostras de sangue e medição da frequência cardíaca.

Para Rosana, este é um dia importante porque será a primeira vez na história que um dispositivo de monitoramento da frequência cardíaca será implantado num lobo-guará selvagem.

Monitores de frequência cardíaca são usados em seres humanos há muito tempo, mas hoje, o monitor cardíaco subcutâneo de 2,4 gramas doado pela Medtronic para o estudo será usado num lobo-guará.

Rosana diz que ele medirá os efeitos negativos do ambiente sobre os ritmos cardíacos e investigará como o impacto humano afeta a frequência cardíaca do animal. Isso permitirá que os cientistas avaliem o risco dos efeitos negativos de longo prazo sobre a saúde dos indivíduos e populações do lobo-guará ameaçado. Ao final, pretendem criar ambientes saudáveis e livres de estresse.

Quando olho ao redor, quase não vejo vegetação de Cerrado, apenas uma colcha de retalhos de lavouras e pastagens.

Perto dos extensos canaviais há plantações de café com trechos de terra nua entre eles. Se acrescentarmos isso ao desmatamento na Amazônia e na Mata Atlântica, não surpreende que os lobos-guará estejam cada vez mais espremidos num fragmentado labirinto feito pelo ser humano, do qual é impossível escapar.

Rogério coleta um pouco de leite da loba num tubo de ensaio, mede o corpo do animal e coleta pelo, urina e saliva, que serão enviados ao Cenap para pesquisa. Rosana, enquanto isso, checa o equipamento e acompanha atentamente a frequência cardíaca de sua primeira paciente. Tudo corre bem quando ela insere o dispositivo pouco abaixo da pele.

Todos ficam em silêncio até ela abrir um sorriso de satisfação. É o primeiro dispositivo de monitoramento cardíaco a ser implantado num lobo-guará selvagem.

Mas Lupe não é o primeiro espécime de lobo-guará a usar um aparelho desses. No SCBI, Rosana de Moraes coletou dados de frequência cardíaca em animais de cativeiro durante mais de um ano.

Os estressores são, é claro, muito diferentes na natureza – um cortador de grama com certeza é menos estressante do que caminhões ou tiros de arma de fogo – mas os resultados desse estudo prévio podem ajudar a prever as medições que serão feitas no Cerrado, que ainda serão divulgadas.

Depois de inserir o dispositivo de monitoramento em Lupe, os pesquisadores carregam as picapes com todo o material e colocam a loba na jaula sob a sombra de uma árvore. Ali ela poderá despertar tranquilamente enquanto tomamos um café com o dono da propriedade.

Fazendeiros como aliados

Ricardo explica que as conversas que ele e Rogério tiveram com os donos das propriedades são essenciais para a preservação do lobo-guará. Em áreas mais distantes, os fazendeiros checam as jaulas que os cientistas instalaram e avisam imediatamente a equipe quando há algum lobo dentro.

Infelizmente, cada vez mais lobos com sarna canina estão aparecendo em áreas de Cerrado no estado de São Paulo. A sarna provavelmente não é transmitida apenas por cachorros, mas também pode ser desencadeada por estresse.

Só neste ano, seis novos lobos com sarna sarcóptica, doença transmitida por um ácaro, foram avistados por armadilhas fotográficas na região. A equipe está se esforçando para capturá-los a fim de investigar a saúde dos lobos e fornecer o tratamento ideal.

Rogério e Ricardo tentam fazer com que os fazendeiros sintam-se responsáveis pelos lobos e seu ambiente. Transferir os animais para outro local não é uma opção, porque o lobo-guará é muito apegado ao seu habitat.

Os fazendeiros com quem Rogério trabalha, por exemplo, cooperam não fazendo a colheita de toda a cana-de-açúcar de uma só vez, mas deixando algumas áreas intactas para que o lobo ainda tenha algum refúgio.

Com outros fazendeiros, ele fez acordos para manter o gado restrito a determinadas áreas para evitar que se alimente dos frutos da lobeira (Solanum lycocarpum), um dos petiscos favoritos do lobo-guará, quando estes estão maduros.

Rogério nos leva a uma lobeira onde quer checar uma armadilha fotográfica. Fica clao que as vacas que pastam ali são um grande obstáculo. Não há um único lobo na câmera desta vez e, por causa disso, ele conversará novamente com o fazendeiro para discutir o problema.

Esta é a área de Ricco, um lobo-guará com sarna que adora essa fruta, mas tem muito medo das vacas.

Na manhã seguinte, Ricco é visto dentro de uma das jaulas. Com falhas na pelagem e pernas longas, ele parece uma raposa de pernas-de-pau. Depois de sedado, recebe medicação via oral para tratar a sarna. Em três meses, estará livre dela.

Serra da Canastra

Depois de duas semanas de um trabalho de campo no meio da poeira, porém gratificante, trocamos o labirinto de São Paulo pelo verdadeiro Cerrado.

Nosso guia, Marcello, que também está envolvido no projeto de Rogério, nos leva em sua Land Rover até o Parque Nacional da Serra da Canastra, no centro-sul de Minas Gerais. Ali vive a maior população de lobos-guará da América do Sul – cerca de 200 indivíduos.

Nossos olhos ainda precisam se acostumar à escuridão porque são apenas 4h da manhã quando Marcello avista um tamanduá-bandeira.

Não será o último. Depois de poucas horas de estrada, já está claro para nós que esse parque abriga uma rica variedade de flora e fauna. Há animais aqui que não são facilmente vistos em outros lugares, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tatu-canastra (Priodontes maximus) e o lobo-guará. Fazemos uma busca entre vastos trechos de gramíneas procurando fezes de lobo.

Na noite seguinte, saímos a campo novamente. O sol se põe e derrama um brilho avermelhado sobre a paisagem. De repente, Marcello avista um falcão-de-coleira (Falco femoralis) pousado nos galhos baixos de uma árvore.

Agora precisamos ficar atentos, porque o falcão e o lobo-guará costumam caçar juntos.

Mudo minhas lentes para fotografá-lo quando, de repente, deparo com um lobo-guará vindo de trás da Land Rover. Fico em silêncio, congelada, enquanto ele procura frutas com elegância e não parece ligar para minha presença.

Sua pelagem brilha sob a luz do fim da tarde. Com seus olhos brilhantes, ele passa pela Land Rover e nem olha para nós. Ele tem uma argola na orelha e uma coleira, e é um lobo já conhecido.

É Larápio, um lobo-guará que vem sendo monitorado por Rogério e sua equipe há algum tempo, e sempre rouba comida e até capacetes de moto dos guardas. Felizmente, eles dão risada disso, mas o mesmo não ocorre com os fazendeiros que vivem nos limites do parque.

Os lobos tinham grande demanda por galinhas, o que fez com que passassem a ser caçados em massa pelos fazendeiros.

Para impedir isso, Rogério e sua equipe criaram um projeto para construir galinheiros à prova de lobos junto com os proprietários locais, e também mudar sua percepção sobre o animal.

Continua após a publicidade

Entre 2007 e 2015, um total de 150 galinheiros foram construídos nas fazendas adjacentes ao parque. Desde então, a situação se acalmou e agora os fazendeiros estão até felizes com o lobo-guará. Afinal, além de ter suas galinhas a salvo, eles ainda se beneficiam dos milhares de turistas que vêm à Serra da Canastra ávidos por ver de perto seu mais célebre habitante.

Fonte: Ecoa

    Você viu?

    Ir para o topo