Tímido e solitário, ele não é nem parente próximo dos lobos do norte ou das raposas. Mesmo assim, leva a culpa por ataques que não comete e é injustamente temido, além de perseguido e envenenado. O ditado “quem vê cara não vê coração” talvez seja o que melhor define o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Maior canídeo da América do Sul, o guará é vítima da má fama associada às histórias de lobo mau. Temido pela população, ele é implacavelmente perseguido e caçado, embora seja um animal solitário, tímido e dócil. A rigor, nem lobo ele é.
Esse animal, considerado ameaçado de extinção pela lista do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), evoluiu separado dos demais canídeos e não é parente próximo de lobos ou raposas, com quem também costuma ser comparado. Embora faça parte da família dos canídeos, pertence a um gênero composto por uma única espécie. Seus parentes distantes do gênero Canis, como o lobo-cinzento ou lobo-vermelho, só existem nas Américas, do México para o norte, além de partes da Europa e da Ásia.
Habitante de campos abertos, o lobo-guará vive, sobretudo, no Cerrado, mas também é encontrado nos Campos Sulinos (pampas), na Caatinga e na borda do Pantanal. Sua distribuição, além do Brasil, inclui a Argentina, o Paraguai, a Bolívia e uma pequena parte do Peru e do Uruguai, onde há pouco conhecimento, apenas um relato de sua presença em 1991.
Até pouco tempo, acreditava-se que a perda do habitat, derivada principalmente da substituição do Cerrado pela agropecuária, fosse a principal causa da diminuição de sua população. No entanto, um workshop realizado no final de outubro, em São Roque de Minas (MG), reunindo 60 pesquisadores do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, revelou uma surpresa: preconceito, desconhecimento e superstição superam a ameaça da perda de habitat. Ainda existem muitos caçadores que perseguem o animal apenas para retirar seus olhos e usar como amuleto! E muitos fazendeiros, granjeiros e sitiantes envenenam comida para matá-los, temendo ataques a aves e pequenos animais domésticos.
Segundo o biólogo Rogério Cunha de Paula, do Centro Nacional para Pesquisa e Conservação dos Predadores Naturais do IBAMA (Cenap), com sede em Atibaia, São Paulo, a outra grande ameaça — essa sim relacionada à falta de habitat — é o atropelamento. “Como são animais de áreas abertas, conseguem viver em locais degradados. Com o desmatamento da Mata Atlântica, hoje são encontrados até no Rio de Janeiro e no Espírito Santo. No entanto, não usam áreas de pastagem ou plantação, estão ali de passagem. E, nessa procura por território, acabam caçados ou atropelados”, diz o pesquisador.
Um estudo realizado pelo pesquisador Flávio Rodrigues, da organização não-governamental Instituto Pró-Carnívoros, na Estação Ecológica Águas Emendadas, próxima a Brasília, estima que, em dez anos, o lobo-guará poderá estar extinto no local, devido à combinação da falta de habitat e atropelamentos. Isso acontece por conta da pressão da população humana, em expansão sobre as poucas áreas de Cerrado que ainda sobram por ali. Como são animais territoriais e não há espaço para todos, alguns acabam saindo e tornando-se vulneráveis. Outra área crítica é o Mato Grosso, onde o Cerrado também desaparece rapidamente.
Rodrigues e de Paula são os coordenadores da mais completa pesquisa sobre o lobo-guará, uma parceria entre o Cenap e a Pró-Carnívoros, em andamento desde o início de 2004, no Parque Nacional da Serra da Canastra, de 71.525 hectares, localizado no sudoeste de Minas Gerais. O estudo inclui o monitoramento de 18 lobos com rádios-colar — sete deles em áreas de fazendas fora do Parque. A Canastra foi escolhida por ter uma boa densidade populacional da espécie — estimada em 0,1 indivíduo por km2, o que corresponde a 70 ou 80 animais —, além de possuir dados anteriores para comparação, graças a um estudo prévio realizado entre 1974 e 1978, pelo pesquisador James Dietz, da Universidade de Maryland (EUA).
O projeto inclui o estudo da ecologia, reprodução e genética populacional do lobo-guará e tem como objetivos conhecer o comportamento social e caracterizar as áreas de vida de cada animal, com relação à disponibilidade de alimentos e habitats. Os pesquisadores querem saber ainda como os animais jovens se dispersam; caracterizar a variabilidade genética da população, estudar o ciclo reprodutivo em vida livre e comparar as características reprodutivas entre os animais que vivem em áreas protegidas e os que vivem próximos a fazendas e estradas.
A partir disso, pretendem identificar as principais causas de mortalidade, identificar riscos de doenças transmitidas por animais domésticos, além de coletar e congelar sêmen para possibilitar, futuramente, o uso de técnicas de reprodução artificial da espécie. À medida que se acumula conhecimento, podem ser definidas as melhores estratégias e ações para conservação da espécie e de seu habitat.
“Cada um dos animais equipados com o rádio-colar passou por avaliação clínica e é visto em campo pelo menos uma vez por semana”, conta o veterinário Ronaldo Morato, chefe do Cenap. Os exames mostraram que todos os indivíduos estão em boa condição geral e apresentam apenas alguns problemas com carrapatos, mas que não têm afetado a saúde dos animais. Embora nunca tenham sido verificadas em animais de vida livre, doenças relacionadas a animais domésticos são uma preocupação, sobretudo por causa do contato da espécie com cachorros, seja quando os cães entram nas unidades de conservação, ou quando os lobos passam pelas fazendas.
Além de ser multidisciplinar e envolver 18 pesquisadores – seis deles fixos em campo –, entre os quais três norte-americanos, o estudo tem o diferencial de ser de longo prazo, sem data para terminar. A ideia é acompanhar os lobos por pelo menos duas gerações, o que significa mais de 20 anos, já que a espécie vive até 13 anos.
Uma das observações inéditas dos pesquisadores, nesses quase dois anos de trabalho no Parque da Serra da Canastra, é a colaboração dos machos no cuidado com os filhotes, fato já observado em cativeiro, mas ainda não comprovado na natureza. De hábitos solitários, os lobos-guarás andam em pares apenas durante o período de reprodução, quando a fêmea convida o macho para o acasalamento com uma série de movimentos do corpo. O estudo quer saber exatamente quanto tempo o casal permanece junto em cada ciclo reprodutivo.
Esses animais são parcialmente monogâmicos e normalmente permanecem juntos enquanto estiverem acasalando. “No caso de um dos casais acompanhados desde o início do estudo, a fêmea morreu e, desde então, o macho tem estado próximo a fêmeas diferentes, mas ainda não escolheu uma nova parceira”, conta Rogério de Paula.
O lobo-guará é um animal grande. Chega a medir até 1,30 metro de corpo, além de 40 cm de cauda, podendo atingir até 1 metro de altura e mais de 20 quilos. De sua pelagem avermelhada, segundo alguns, teria derivado o guará do nome, de origem tupi (guará = vermelho). A parte inferior das pernas, a extremidade da cauda e o focinho são negros e os pelos dorsais, atrás da cabeça, ficam eretos quando o animal está excitado. Apesar do porte e da aparência feroz, são animais inofensivos ao homem e raramente brigam entre si. As lutas entre os machos são ocasionais, ao passo que já se verificaram casos de lobos saírem em socorro de um companheiro atacado.
Fonte: EPTV