É profundamente desolador assistir à lenta hecatombe da vida marinha na orla costeira da Madeira. A opção desastrosa de despejar no litoral toda a escória que se produz em terra, subvertendo as limitações da capacidade regenerativa do mar, permitiu que pequenos danos em ecossistemas marinhos locais se transformassem num hediondo massacre da vida subaquática e na ruína da cadeia alimentar.
Que diria o oceanógrafo francês Jacques Costeau se chegasse hoje ao arquipélago e visse que as mesmas águas marinhas onde mergulhou na década de 60 e classificou como sendo das mais cristalinas e límpidas do mundo, se resumem, afinal, a um sarcófago pantanoso e um deserto de vida?
Eu não contesto a decisão tomada logo após a tragédia de 20 de fevereiro. O cenário era dantesco o suficiente para motivar uma reação relâmpago igualmente tempestiva e caótica. Quantos de nós não sentiu um arrepio de pele ao assistir à admirável mobilização de meios – homens, máquinas e camiões – que, num ápice, se fizeram às ribeiras e desassorearam os caudais, mesmo que isso custasse o impacto de um aterro gigante em pleno litoral funchalense? Quantas vidas não foram poupadas quando ainda se contabilizavam os mortos? Estou certo de que foi um de muitos atos de elevado altruísmo saídos da penumbra da tragédia. Um sinal de solidariedade e de confiança. E um alerta compreendido por todos os madeirenses sobre a inevitabilidade de, mesmo no caos de todas as perdas, ser o momento para arregaçar as mangas.
Mas passou quase um ano e o aterro não desaterrou. Ainda aumentou de tamanho. Sabe-se agora que o depósito temporário de inertes, designação que lhe conferiu um caráter de isenção à lei, tem margem para progredir e vir a ser um cais acostável com porto de recreio, áreas de lazer e arranjo urbanístico assinalável. Felizmente, o projeto para o litoral do Funchal apresentou-se ao público antes do primeiro aniversário sobre a tragédia.
O problema é que o aterro do Funchal converteu-se num chapéu de demagogia, sob o qual foram proliferando outros tantos aterros como cogumelos. Sem nada que o justificasse. Os aterros sósias são os mesmos que herdaram a cultura do abstencionismo ambiental, que se equiparam às fajãs e não se enquadram nesta política de solidariedade do pós 20 de Fevereiro. O bananal que já não o é, no Porto Novo, é disso exemplo. Afinal, o que é aquilo?
É incrível como uma Região onde a esmagadora maioria do seu território é mar enlameie de forma tão leviana os recursos marinhos. Um arquipélago com oceanógrafos e biólogos marinhos a menos e engenheiros civis e advogados a mais, termina assim: com marés de lama. Embora contaminem a biodiversidade e destruam micro-organismos essenciais para a subsistência da flora e fauna marinha de toda uma cadeia alimentar, encontram sempre uma razão técnica para continuar a poluir e um argumento jurídico que sustente essa prática.
Fonte: dnoticias