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Laudato si' para os animais

4 de novembro de 2015
6 min. de leitura
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A Carta Encíclica do Papa Francisco denominada Laudato si’: sobre o cuidado da Casa Comum, com seus seis capítulos e 246 tópicos, foi divulgada oficialmente no dia 18 de junho de 2015, com grande repercussão na imprensa. Todos queriam conhecer a posição e recomendações do Papa Francisco em relação ao cenário preocupante do aquecimento global.
A Encíclica não traz novos dados para além daqueles que já vêm sendo anunciado e denunciado desde a década de 70. Nestas discussões a inserção do tema na esfera ética e moral, também não é algo novo, assim como já está na pauta, a um bom tempo, a ideia que “tudo está conectado”. O que então há de novo? Considero que a grande contribuição e força da encíclica é autoridade moral e ética de Francisco. Sua voz e seus atos são acolhidos entre pessoas de todos os cantos do mundo e de todas as religiões. Ele é, sem dúvida, uma grande liderança mundial. Demonstra com o seu exemplo de vida que é possível inventar outras formas de ser e de se relacionar com as pessoas, com a natureza e, principalmente, com o poder.
Este texto é um recorte de um estudo maior que realizamos sobre a encíclica e a educação e que em breve será publicado. Por ora vamos levantar alguns elementos que o Papa Francisco, a partir desse lugar que oupa, traz e que ajudam na composição de um olhar ético e moral para com os animais.
Francisco desautoriza aqueles que utilizam a bíblia para justificar o antropocentrismo despótico que se desinteressa das outras criaturas e assume de forma explicita a sua valorização à parte de sua utilidade para os seres humanos. (LS n. 68; 115; 118; 138). Utiliza-se, inclusive a expressão esquizofrenia permanente para designar a exaltação tecnocrática, que não reconhece aos outros seres um valor próprio. Nos chama ao longo do tópico 69 a reconhecer que “os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e lhe dão glória”. Também que “cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus”. No tópico 84 e 85, Francisco irá dizer que “cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua” e que “nenhuma criatura fica fora desta manifestação de Deus”.
Se levarmos estas afirmações ao pé da letra, temos que considerar que toda a criatura, sem exceção, tem o seu propósito: papagaio, jacaré, avestruz, galinha, cavalo, pato, marreco, elefante, borboleta e porco, etc. Entendemos também que este proposito não é de servir o homem, ser um recurso natural renovável e muito menos ser objeto de consumo.
Francisco, neste sentido, considera simplista a ideia de que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, “como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade”. Sua importância não está em sua utilidade, mas na sua existência singular. Situa a criação à ordem do amor. “Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência” (LS76 e 76).
Interessante a análise de André Wénin, biblista exegeta, teólogo e doutor em Ciências Bíblicas, em sua entrevista à Revista Unisinos (IHU – N.469 – Ano XV de 03/08/2015). Ele faz uma análise interessante quando parte do princípio que o Criador dá aos viventes seu alimento (Genesis 29-30). Aos humanos os cereais e os frutos; aos animais, os vegetais. Segundo ele, “ isso pode parecer anedótico, mas, ao contrário, é essencial”. Na íntegra ele diz: “Porque, se os humanos devem dominar os animais, mas não se alimentarem da carne destes significa que podem dominá-los sem matá-los, sem violentá-los. E, uma vez que os humanos e os animais não têm a mesma alimentação, não deverão lutar entre eles para poderem comer. Tem-se aí a imagem de uma relação “suave” com a criação, uma forma de exercer o domínio sobre o mundo que respeita profundamente o mundo e seus habitantes” (p.75). Nessa direção a historiadora Chiara Frugoni, analisa que Deus havia previsto uma alimentação só vegetariana, tanto para os homens como para os animais (Gen1,29-30). Logo após esta descrição das relações no paraíso, temos a entrada do pecado (Gênesis 3), que seria, segundo Francisco, uma ruptura das três relações vitais: com Deus, com o próximo e com a Terra. “O pecado representa a nossa pretensão de ocupar o lugar de Deus, recusando reconhecer-nos como criaturas limitadas” (LS66). De exclusivamente vegetarianos, tornaram-se carnívoros, obrigados também eles, para sobreviver, a matar, considera Frugoni. Entendemos que não se tornaram, obrigatoriamente, carnívoros. Somos onívoros e temos, portanto, a possibilidade de fazer escolhas.
Temos, portanto, uma longa discussão sobre o lugar das demais criaturas e também dos recursos naturais, que não deixa nenhuma dúvida que nossa relação com os demais entes da criação é predatória e desordenada. Nos tópicos 81 a 89, temos essa relação detalhada. Para Francisco, a visão que “consolida o arbítrio do mais forte” é que favoreceu imensas desigualdades, injustiças e violências para maior parte da humanidade. Ele é enfático ao dizer que devemos “rejeitar todo e qualquer domínio despótico e irresponsável do ser humano sobre as outras criaturas. “O fim último das restantes criaturas não somos nós”.
Caminhamos na contramão desse discurso. É muito interessante para o mercado nomear uma criatura, sujeito de uma vida, como arroba, peça, quilo, commodities, pois assim, deixamos de enxerga-los como “alguém”. Esta fragmentação do saber não é neutra, mas “realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se torna irrelevante” (LS 110). Tamanha é a nossa cegueira! E também nossa “esquizofrenia permanente”, que se estende da exaltação tecnocrática, que não reconhece aos outros seres um valor próprio (LS 118). Francisco nos alerta dizendo: “é verdade também que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam de alguma forma por repercutir-se no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. O coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. Todo o encarniçamento contra qualquer criatura é contrário à dignidade humana” (LS92). O encarniçamento, significa, dentre outras coisas a crueldade e a insistência em prosseguir, em manter alguma coisa. Não é mais possível dizer que não sabíamos.
Por fim, há que se considerar que não existe “abate humanitário”. Quem lê, estuda e conhece a realidade das grandes indústrias que exploram os animais, sabe que o que menos existe em seus processos é algo humano, amoroso, de compaixão ou de respeito. Ao contrário, perdura a escravidão, crueldade, violação da natureza inscrita em seus corpos, mutilação, inseminação artificial e separação de organizações familiares. Que a voz de Francisco nos ajude!

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