Por Haroldo Castro
Criar parques binacionais e transfronteiriços, além de ser uma boa estratégia de conservação, promove um benefício adicional importante: os diálogos necessários entre os dois países obrigam a um melhor relacionamento entre governos na área ambiental. Com o estabelecimento de um parque binacional, a fronteira política – intrinsecamente uma área de potencial tensão – passa a ser uma ponte para a paz entre nações vizinhas.
O primeiro parque transfronteiriço criado na África tem hoje quase 10 anos de idade. O parque Kgalagadi é o resultado da boa vontade entre África do Sul e Botsuana, que reconheceram, desde 1998, que seus objetivos ambientais eram idênticos. Como a fronteira só existia no papel e não na natureza – os animais migram de um lado para outro livremente – Kgalagadi tornou-se um novo modelo de conservação. A união das duas reservas que já existiam anteriormente gerou a criação de um dos maiores parques do mundo, com 3,6 milhões de hectares. (O maior parque nacional brasileiro, das Montanhas de Tumucumaque, no Amapá e no Pará, possui 3,8 milhões de hectares).
As temperaturas extremas (11 graus negativos no inverno e um calor de 42 graus na sombra no verão) fazem com que os animais que escolheram o Kalahari como morada tenham de ter muito caráter e força. Um dos antílopes mais elegantes, encontrado no vale dos riachos (secos) Auob e Nossob, é o órix (Oryx gazella). Como ele não precisa beber muita água (consegue extrair o líquido das plantas que come), o órix também pode viver nas dunas vermelhas entre os dois leitos de rio, em um ambiente ainda mais quente e seco.
Logo que entramos no parque, a poeira do Kahalari toma conta da Nandi. Existem apenas quatro estradas na reserva. Todas são de areia. Como é proibido trafegar off-road, é dessas estradas que pretendemos ver os principais habitantes de Kgalagadi. O animal mais abundante é o springbok ou a cabra-de-leque (Antidorcas marsupialis). Apesar de frágil, essa gazela pode atingir 90 km/h quando perseguida por uma chita ou um leão. O gnu-azul (Connochaetes taurinus) , com uma aparência de boi-cavalo, é outro mamífero bem comum em Kgalagadi.
Em qualquer parque é indispensável uma troca constante de informações entre os visitantes. Ao cruzar o primeiro veículo, somos avisados de que três guepardos ou chitas (Acinonyx jubatus) estão sob a sombra de uma frondosa árvore, a poucos quilômetros adiante. É quase impossível ver, a olho nu, os felinos, mas com a objetiva 500 mm consigo observar um pouquinho do contorno. Após alguns minutos em silêncio, um chita, mais curioso e menos preguiçoso, levanta a cabeça e senta sobre suas patas traseiras (foto). A espiada dura apenas quatro segundos, tempo suficiente para captar algumas imagens. Os dois outros chitas permanecem deitados, quase que invisíveis.
O bicho mais procurado por todos é o leão. Aqui, o leão é diferente, pois o macho adulto possui uma elegante juba preta. A razão seria uma melhor camuflagem, pois ele pode se misturar com a cor escura dos troncos das acácias. Os leões daqui também são maiores em tamanho. Acredita-se que as longas distâncias que eles devem percorrer em busca do jantar (leia-se antílopes) sejam a maior responsável pelo porte atlético do majestoso felino.
Nosso desejo de descobrir um leão de juba preta é tão grande que, em poucas horas, o encontramos. Tomamos um susto enorme, pois o bicho está deitado, na sombra, a apenas um metro de distância da estrada. De tão perto, quase não o percebemos. Parece estar entediado com o calor, pois até mesmo nossa barulhenta marcha à ré não o distrai. Continua dormindo e apenas abre um olho para verificar a companhia.
Se esse leão dorminhoco é uma bela surpresa, a descoberta dos próximos dois leões é um espanto maior. Quando chegamos, na hora do pôr do sol, na pousada !Xaus, dois jovens machos aproximam-se do lago salgado (seco 364 dias por ano) para beber em um ponto de água. A caminhada, cruzando a planície salgada, é lenta e demora vários minutos. Todos que assistem ao espetáculo evitam qualquer ruído ou movimento. Único desafio: a luz do dia desaparece em uma velocidade maior do que a dos leões. Mesmo assim, conseguimos algumas belas imagens. Os dois animais permanecem ao redor do ponto de água por meia hora e depois, já na escuridão, saem para caçar.
Mesmo não sendo um experto observador de aves, fico impressionado com as dezenas de espécies de pássaros de Kgalagadi. Um dos espetáculos mais marcantes é a caça do falcão peneireiro. Aproveitando um forte vento de frente, ele fica parado no ar, com asas abertas, à espera de algum movimento. Quando vê uma presa na planície, mesmo se a 100 metros de distância, ele mergulha vertiginosamente e a agarra com as patas. Ele não come sua refeição no chão, prefere levá-la para o ar.
Fonte: Época