No Brasil, algumas práticas de crueldade animal, como as rinhas de galo e a Farra do Boi, são consideradas ilegais e punidas com cadeia. Mas há um tipo de violência contra animais quase ignorada pelas autoridades e pela Justiça: os maus-tratos contra cães, gatos e outros animais domésticos.
O caso mais recente foi um vídeo publicado na internet em 14 de dezembro mostrando um pequeno cão yorkshire espancado por uma mulher em Formosa, no interior de Goiás. A violência é presenciada por uma criança pequena, supostamente a filha da agressora. Segundo a polícia, o cão morreu. Também os casos de Titã, enterrado vivo em Novo Horizonte, e Lobo, o rottweiler que morreu depois de ser amarrado a um carro e arrastado pelo próprio tutor em Piracicaba, ambos em São Paulo, chamaram atenção. Infelizmente, esses não são episódios isolados.
O crime de maus-tratos não costuma ser considerado caso de polícia nem mesmo pela polícia – apesar de o ser. Os registros são precários e não há dados oficiais sobre os abusos cometidos contra animais domésticos no Brasil. O dia a dia das entidades que resgatam esses animais, no entanto, dá uma ideia de como as agressões são recorrentes. “Pela quantidade de cães que temos aqui já é possivel ter uma ideia do tamanho desse universo de crueldade”, afirma Claudia Demarchi, presidente da ONG Clube dos Vira-Latas, de Ribeirão Pires. “Recebemos mais de 100 e-mails e telefonemas por dia com denúncias e cerca de 20% estão relacionadas a maus-tratos”.
No canil que coordena há sete anos, ela cuida de aproximadamente 500 cães. Entre eles há vários “Titãs” e “Lobos”, animais mutilados e traumatizados pela crueldade dos homens.
O cão Toni, por exemplo, foi arrastado pelo tutor, tal como Lobo. Ele perdeu parte da pata esquerda e, há um ano, recebe tratamento no Clube dos Vira-Latas. O pit bull Ezequiel teve as duas patas dianteiras quebradas e os olhos queimados com cigarro. Brutos ficou 11 anos amarrado a uma corda de pouco mais de um metro na laje de casa. Quando foi resgatado com apoio da polícia, mal conseguia andar. A mascote do lugar, Fraldinha, foi jogada em um rio com a coluna quebrada. Hoje, ela se locomove com o auxílio de uma cadeira de rodas.
Cada animal precisa passar por, no mínimo, três meses de tratamento e readaptação até poder ser liberado para adoção. Só neste ano, o Clube dos Vira-Latas conseguiu encontrar um lar para 380 cães, como Kadu, encontrado na rua com duas patas quebradas. Uma teve de ser amputada e, a outra, ficou com sequelas. A família da secretária Verônica Kubalack Ferreira, de 48 anos, esperou três meses para levá-lo para casa. “Valeu muito a pena aguardar a recuperação”, diz Verônica. “Apesar de ainda ser um pouco assustado, ele é muito carinhoso. E ter o Kadu me despertou ainda mais para a causa dos animais maltratados”.
O Centro de Controle de Zoonoses da cidade de São Paulo recebeu neste ano 8.702 denúncias de maus-tratos e mais da metade foi confirmada após vistoria. Em média, são 14 casos por dia.
Penas brandas
Miriam Miranda, presidente da ONG Vira Lata, Vira Vida, de Piracicaba, acompanhou de perto o caso de Lobo. Ela diz que os maus-tratos contra animais domésticos se perpetuam porque a penalidade para esse tipo de crime é muito branda.
“Não há possibilidade de uma pessoa que maltrata e mata um animal acabar presa”, constata Miriam. “No caso do Lobo, por exemplo, a pena foi uma multa de dois salários mínimos (1 090 reais) e trabalho voluntário de 120 horas no canil municipal. Isso é muito pouco. Só o tratamento para tentar salvar a vida do Lobo custou 7 500 reais”. Lembre-se aqui que são raras as ONGs de proteção aos animais que recebem dinheiro público. A maioria delas sobrevive de doações e sob o risco permanente de fechar por falta de recursos.
O caso do rottweiller criou uma mobilização nacional que levou ativistas até Brasília para pedir que a lei seja mais dura. Hoje, os maus-tratos contra animais domésticos são enquadrados na lei de crimes ambientais (nº 9605/98). A pena varia de três meses a um ano de prisão – no máximo um ano e meio, se há a morte do animal. Os casos acabam convertidos em penas alternativas, com o pagamento de cestas básicas ou a realização de serviços comunitários.
Existem hoje em tramitação no Congresso Nacional 21 projetos relacionados à questão animal, alguns há mais de 10 anos. Mas nem todos vêm para melhorar a situação. Um deles, de autoria do ex-deputado do PSDB de Alagoas José Thomaz Nonô, quer excluir das sanções penais as práticas contra animais domésticos ou domesticados. O projeto está pronto para ser votado e acaba emperrando outras propostas, como a da bancada do Partido Verde que pede o aumento da pena para maus tratos para até quatro anos de prisão.
“Se pedirmos para votar o projeto do PV, pelo regimento teremos que votar também o projeto do Nonô, que é sobre o mesmo tema”, afirma o deputado federal Ricardo Izar (PSD-SP), presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Animais do Congresso. “E nosso receio é que ele seja aprovado”. A estratégia é esperar até 2014 para que o projeto do tucano caduque. “O problema é que há pouca vontade política em relação ao tema dos animais”, diz Izar. “Esse é considerado um assunto de menor importância”.
Para driblar essa morosidade, entidades de proteção aos animais do estado de São Paulo começarão no ano que vem uma campanha para conseguir 1,5 milhão de assinaturas e apresentar um projeto de iniciativa popular para a criação da Lei Lobo (para assinar a petição, clique aqui), que seria elaborada com a ajuda do Ministério da Justiça para aumentar a pena para agressores de animais. Até que a legislação do Brasil evolua, lobos e titãs continuarão a contar apenas com a caridade de algumas poucas cláudias, mirians e verônicas.
Fonte: Veja