Se fecho os olhos, ainda sou capaz de lembrar de cada detalhe daquele domingo, cinco de dezembro de 2021. Nenhuma nuvem no céu, sol de mais de 30 graus às dez da manhã. Peguei o boné, passei protetor solar e me encolhi na única fresta de sombra que encontrei do outro lado da rua. Eu sabia que o dia seria bem longo e de muita espera. Espera pelo dono do imóvel que iria abrir a casa abandonada trancada com cadeado, onde eu esperava bem em frente. Espera pelo homem contratado pra fazer o resgate naquele mesmo lugar.
Primeiro, apareceu o propietário da casa e dava pra ver que ele não pisava ali há um bom tempo. Bastava olhar pro chão pra saber. Correspondências e mais correspondências espalhadas. Ele saiu recolhendo uma por uma e depois foi em direção aos fundos da casa. Subiu as escadas e, assim que pisou no último degrau, só teve tempo de ver um vulto. Eu sabia que se tratava de uma gata. E na sequência vinham os filhotes. Todos correndo pra debaixo da caixa d’água.
O que o dono da casa ficou sabendo naquela hora, meu marido já acompanhava há dois meses. Desde o dia em que abriu a janela do nosso quarto e percebeu, lá embaixo, pontinhos minúsculos se mexendo de um lado pro outro, sem parar. A gente mora no décimo quinto andar de um prédio em São Paulo. Tudo isso se passava do outro lado da rua, numa casa cheia de sujeira. Era difícil cravar com certeza o que se movia com tanta rapidez. Então, ele pegou o celular, fez um vídeo, deu zoom e bingo! Era o que ele imaginava.
Uma família se divertia no chão, mesmo encharcado de água. A mãe e os gatinhos serelepes correndo, pulando atrás de qualquer objeto que pudesse virar brinquedo. O vídeo de 20 segundos veio acompanhado da mensagem: – “Olha o tanto de gato que tem em cima do telhado!”.
Eu estava trabalhando quando recebi a mensagem. Aí, quem disse que eu conseguia me concentrar no que estava fazendo? Depois daquele dia, nunca mais a gente abriu a janela do quarto do mesmo jeito de antes. Sempre que a claridade entrava, nosso olhar tinha direção certa. Descia rapidamente quinze andares, parava perto da caixa d’água e a gente ficava acompanhando por minutos o que aquela família aprontava. Os detalhes como: “Esse tem manchinha do lado esquerdo do rosto”, “esse outro é mais branquinho”, “esse parece ter o pelo mais grosso” a gente só percebeu depois que os binóculos chegaram pelo correio. E nem precisa dizer que logo que a gente descobriu essa família infiltrada na casa abandonada, ela passou a ser alimentada todos os dias, né?
Essa história eu contei no podcast que eu apresento sobre animais, o Bichos na Escuta, do Fantástico (onde sou repórter também) em parceria com o G1. Pra quem tiver curiosidade de ouvir o episódio completo é só buscar: A História de Noel e Cartola. Sim, eles ganharam esses nomes porque eu e meu marido somos loucos por samba. Pra quem não ouviu o podcast e tá sabendo de tudo agora, deixa eu retomar a história a partir daqui.
A gente não queria só dar comida e água pros gatinhos. A gente queria encontrar um lar pra eles. Foi por isso que eu corri atrás do dono da casa e pesquisei quem poderia retirar eles de lá. Todos os gatos eram muito ariscos. Sempre que a gente chegava com ração na frente da casa e eles percebiam o nosso movimento, já saíam correndo. Por isso, eu precisei contratar um especialista nesse tipo de resgate. Ele monta a armadilha, o gato entra, ele leva pra castrar. Foi assim naquele domingo.
Os dois filhotes entraram na gaiola sem grandes dificuldades para surpresa de todo mundo que estava a postos, esperando. Eles foram castrados, vermifugados e no dia seguinte já foram levados pro novo endereço. Nosso apartamento. A verdade é que a gente não iria ficar com eles. Nossa casa serviria de lar temporário até que algum interessado aparecesse. Mas, você, leitor, já fez lar temporário alguma vez na vida? Quem se propõe a isso tem meu total respeito. Logo nos primeiros dias, a gente viu que lar temporário não iria funcionar. No dia em que escrevo essa coluna, Noel e Cartola completam quatro meses com a gente.
Essa duplinha que parece ter saído de mães diferentes, de tão oposto que um é do outro, tem agora como irmã a Menina, nossa gata de sete anos. Você ainda vai ler muito sobre ela por aqui e saber muitas histórias desse trio que ainda está se conhecendo, que ainda tem se estranhado muito, mas que já aprontou bastante em casa pro pouco tempo que está junto. Mas isso é papo pra próxima coluna, quando eu vou contar também o que aconteceu com a mãezinha do Noel e do Cartola.
Fonte: Revista Casa e Jardim