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Jornalismo especista

2 de dezembro de 2011
Paula Brügger
5 min. de leitura
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Seria deveras cansativo reagir diariamente às inúmeras matérias cujos conteúdos especistas assolam a programação das TVs brasileiras. Mas, a título de exemplo, analisemos o conteúdo de duas matérias recentes nesse sentido, veiculadas na Globo News.
A primeira delas fez parte do programa Mundo S/A do dia 28 de novembro de 2011. Nessa matéria, a apresentadora Joana Calmon entrevistou Franck Bonnet, da Maison Bonnet,  cuja atividade é “emoldurar  o rosto com armações esculpidas em materiais nobres e raros, como casco de tartaruga, que podem custar o preço de um carro: R$ 60 mil. Mais do que corrigir a visão, óculos feitos para marcar um estilo, sob medida, que levam em conta a personalidade do cliente. Um ofício que poucos dominam. E um luxo para conhecedores” [1].
Na entrevista, Franck Bonnet não poupou elogios de toda sorte às qualidades do seu valioso material – os cascos de tartarugas – sobretudo às preciosas regiões amarelas, raras e caras, mais abundantes em animais grandes, centenários, e lamenta a proibição imposta em 1974, pela Convenção de Washington, da comercialização de carapaças de tartaruga de quaisquer tamanhos. Mas o entrevistado tranqüiliza seus potenciais clientes vips – os poucos privilegiados que podem pagar por esse luxo de origem cruel –  destacando que a Maison Bonnet tratou de garantir um bom estoque desse “material nobre” (sic) antes da entrada em vigor da interdição. Não é difícil imaginar o banho de sangue que antecedeu a vigência daquela normativa. Milhões de animais devem ter sido impiedosamente assassinados num exíguo espaço de tempo.  Mas, para Bonnet, os cascos de tartarugas são somente um produto. E, coerentemente com esse ideário, a matéria se encaminha no sentido de consolar os telespectadores, mais uma vez, ao dizer que, para os que não podem bancar tal exclusividade, há peças confeccionadas com chifres de búfalo, carneiro, zebu, ou mesmo acetato, mais accessíveis.
Além de a matéria ser uma apologia à futilidade e a um estilo de vida elitista, tanto o entrevistado quanto a entrevistadora perderam uma excelente oportunidade de esclarecer os telespectadores e os possíveis clientes da Maison Bonnet que, em pleno século XXI, com a variedade de  novos materiais disponíveis, é totalmente injustificável massacrar animais, raros ou não, para atender à vaidade e às pseudo necessidades humanas, como comer carne. Mesmo assim o entrevistado supostamente chic diz , sem pudor, que abdicou do uso de cascos das tartarugas unicamente por força de uma lei, não por qualquer espécie de consideração de ordem ética.
Na língua do entrevistado, proponho um adjetivo que exprime muito bem o conteúdo da matéria: dégueulasse! vraiment dégueulasse! [2]
*
Muito infeliz foi também o comentário do apresentador André Trigueiro, no Jornal das 10 do dia 29 de novembro de 2011, sobre o destino de alguns javalis provenientes de um criadouro ilegal. “Uma operação da Coordenadoria Integrada de Combate aos Crimes Ambientais (Cicca), da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA), apreendeu cerca de 90 javalis, de 316, que estavam num criadouro ilegal na Área de Proteção Ambiental de Macaé de Cima, em Nova Friburgo, na Região Serrana do Rio de Janeiro. A chamada Operação Obelix foi realizada na manhã desta terça-feira (29), com o objetivo de evitar a invasão de áreas protegidas pelos animais, e contou com a participação do secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc” [3].
Ao anunciar que os animais apreendidos seriam abatidos, Trigueiro se antecipou a um possível sentimento de compaixão por parte dos telespectadores, talvez comovidos com as expressões assustadas dos animais, e afirmou que não era o caso de ter pena deles porque, além de fruto de uma atividade ilegal, os animais pertencem a uma espécie “invasora” (exótica), capaz de causar danos ambientais. A preocupação de ordem ecológica, segundo o site citado antes, se deve ao fato de o criadouro estar situado “a 1.800 metros do Parque Estadual dos Três Picos e de não existir na região predadores naturais da espécie” (à exceção dos seres humanos, claro!).
O que o jornalista parece não compreender é que tais alegações não diminuem nem um pouco o sofrimento daqueles seres sencientes indefesos que pagarão com suas vidas pela ganância e irresponsabilidade do criador, e pela indiferença daqueles que os vêem como fontes de proteína, como meros produtos. A senciência animal é uma característica que está relacionada aos aspectos fisiológicos e psíquicos dos animais. Nada tem a ver com destruição do meio ambiente, ou com a ilegalidade ou não dos campos de concentração para animais que eufemisticamente chamamos de granjas e criadouros.
É importante deixar claro também que, se tais animais se tornaram uma espécie com  potencial de causar danos ambientais, a culpa não é deles e sim dos seres humanos que os domesticaram e os introduziram indevidamente em regiões supostamente frágeis ou inapropriadas. Tampouco o fato de a carne ser doada para alguma entidade beneficente, restaurante popular, ou comunidade carente, como também anunciou o apresentador, torna esse abate moralmente justificável.
Assim, o comentário que tinha a “boa intenção” de apaziguar possíveis corações desolados com o abate dos animais, acabou por reforçar a abordagem ecológica rasa, antropocêntrica, dentro da qual o valor da vida é reduzido à sua dimensão instrumental. Nessa perspectiva os seres humanos são a medida de todas as coisas e os demais “componentes” da biosfera são preservados, ou não, segundo a sua capacidade de prover algum tipo de vantagem aos humanos.
Neutro, é tudo o que esse jornalismo não é. É algo estapafúrdio pensar que a maioria dos jornalistas acredita, ou diz acreditar, ser possível trazer a notícia de forma isenta. As duas matérias comentadas aqui demonstram essa impossibilidade de maneira inequívoca: de um lado lamenta-se não mais poder caçar um animal para atender à vaidade humana. Nesse caso, trata-se de um animal ameaçado de extinção, portanto um animal de “primeira classe”. De outro, procura-se justificar a morte de animais que não correm risco de extinção –  animais de “segunda classe” (sic) –  porque eles oferecem riscos ao meio ambiente, não se levando em conta que os possíveis danos por eles causados seriam decorrentes de uma mera luta pela sobrevivência. Mas, em ambos os casos, eles são apenas recursos, meios para se atingir fins como alimentação, vestuário etc. A ausência de neutralidade das notícias jornalísticas tem mais um aspecto: a própria escolha de um tema, e não de outro, (caso emblemático dos óculos da Maison Bonnet) já compromete a neutralidade. Triste pensar que somos todos (des)educados, diariamente,  por matérias assim.
Notas:
[1]: Extraído de http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2011/11/mundo-s-mostra-oculos-exclusivos-e-apresentacoes-divertidas.html
[2]: Verdadeiramente horrível, repulsivo, nojento!
[3]: Extraído de http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/11/operacao-apreende-90-javalis-de-criacao-ilegal-perto-de-parque-no-rj.html

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