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Je NE suis PAS Charlie!

22 de janeiro de 2016
Paula Brügger
4 min. de leitura
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Causou-me horror e perplexidade uma charge intitulada “Migrants”, publicada pelo jornal francês Charlie Hebdo, na qual a imagem de Aylan Kurdi, o pequeno refugiado sírio morto afogado ano passado na costa da Turquia, é associada ao episódio no qual centenas de mulheres teriam sido vítimas de violência sexual na cidade alemã de Colônia, na noite do Réveillon de 2015 para 2016.

Na charge, de autoria de Riss [1], pergunta-se: “No que teria se transformado o pequeno Aylan se ele tivesse crescido?” A resposta é que (se não tivesse morrido na travessia pelo mar) o menino teria se tornado um “bolinador de nádegas” [2].  No desenho da charge dois homens, com semblantes de animais (um com focinho de porco e outro que lembra um macaco), correm atrás de duas mulheres aterrorizadas.

Quem pensa que é este senhor para promover, sem cerimônia, o linchamento moral de todo um povo – em bloco – exatamente como se fez em regimes totalitários como o nazismo?
Não é a primeira vez que o semanário francês, que se julga “genial”, achincalha a imagem da morte trágica dessa criança inocente [3], símbolo extremo de todas as vítimas de um contexto perverso maior, dominado pela guerra e pela ganância.

É interessante notar que num momento histórico no qual há um recrudescimento do ódio contra imigrantes ocorra um fato de tal monta. E, claro, a extrema direita e os movimentos neonazistas tiram partido de tais acontecimentos [4]. Em sua arrogância e fúria enlouquecida, Riss e o “Hebdo” fomentam, por conseguinte, ainda mais, a cizânia entre europeus e imigrantes, além de provocar o ressentimento dos povos cuja cultura é por eles tripudiada.

E o que isso tudo tem a ver com a coluna Tao do Bicho?

Primeiro, é impossível não ser tomado por um sentimento de profunda indignação e desesperança quando se aquilata que os proponentes da charge em questão são teoricamente representantes de uma espécie de “nata” intelectual e cultural europeia.

Mas também, como comentado antes, os “assaltantes sexuais” da caricatura de Riss têm caras de animais (um porco e um macaco) e isso nos leva a outras questões: além do racismo, Riss reforça outra forma de preconceito que é o especismo. Mais uma vez reforço a importância da mídia na formação de valores no sentido lato, ou seja, os meios de comunicação “educam”; não existe imparcialidade em suas mensagens escritas ou gráficas. No que tange à nossa relação com as outras espécies animais, venho sublinhando que a educação ambiental crítica deve rejeitar valores antropocêntricos e especistas, e promover abordagens e valores mais biocêntricos, ecocêntricos e zoocêntricos, ou seja, deve ensinar a abrir mão de exercer domínio sobre o outro. Outras expressões de dominação são o imperialismo, o racismo, e o sexismo, as quais são, todas, formas de hierarquias. As hierarquias, por sua vez, são, a rigor, ego-ações [5].

Jeffrey Moussaieff Masson em seu livro “Beasts” afirma que os humanos parecem ter uma propensão irrefreável a estabelecer hierarquias, o que inevitavelmente sinaliza o desejo de dominar os outros. Ele argumenta ainda que a hierarquização é algo mau não só para indivíduos, mas também para toda a sociedade [6].

É monstruoso “urinar” sobre o cadáver de um menino indefeso. Os jornalistas do pasquim Charlie Hebdo colocam em risco não apenas suas próprias peles, mas também as vidas daqueles que consideram seus semelhantes – os franceses caucasianos – na medida em que fornecem combustível para tanto ódio.

Se francesa fosse, estaria eu às portas do “Hebdo” não para lhes prestar qualquer forma de homenagem ou solidariedade, mas para brandir um cartaz de protesto: “Pelo fim do racismo, do imperialismo, do especismo e de todas as formas covardes e cegas de domínio sobre os outros.
Termino indicando um link no qual a rainha Rania, da Jordânia, sugere uma outra versão do que seria o futuro de Aylan Kurdi [7]: “Ele poderia ter sido médico, professor ou pai carinhoso”. Ou quem sabe até um ativista pelos direitos humanos e dos animais?

Notas:

[1]: Diretor do jornal semanal francês Charlie Hebdo; a charge pode ser visualizada no link.
[2]: No original “tripoteur de fesses”; tradução minha.
[3]: Matéria do Globo.
[4]: Ver notícia.
[5]: BRÜGGER, Paula. Educação ou adestramento ambiental? Chapecó: Argos/ Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004, p.164-165.
[6]: Masson, Jeffrey M. Beasts – what animals can teach us about the origins of good and evil. New York: Bloomsbury, 2014.
[7]: Ver link do G1.
Dedico este texto a meu pai que, muito chocado com a publicação da charge, foi o primeiro a me telefonar para conversar sobre o assunto.

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