Por trás das máquinas carcomidas, das engrenagens enferrujadas e das fornalhas abandonadas pelo tempo, que ora dormitam entre as ruínas da estação baleeira da Companhia de Pesca Norte do Brasil (Copesbra), é possível ver o mar. Dali vinha o navio “Koio Maru”, vitorioso em sua saga inglória, rumo à plataforma de retalhamento na praia do Costinha. Veem-se, ainda, pendurados nas laterais do barco japonês, os corpos inertes de jovens baleias que viajaram da Antártida até a Paraíba, para cumprir o ritual da perpetuação da espécie.
A primeira é uma baleia minke, adolescente, cuja idade é possível calcular pelas poucas listras que tem em seu ventre. Homens munidos de foices, ganchos e facões lançam-se, então, sobre ela. Em poucas horas nada sobrará, nem barbatanas, nem carne, nem ossos, nem nada. Vê-se, agora, outra baleia sendo içada pela indústria da morte. Desta vez é um macho, com um enorme buraco de arpão aberto no costado, provavelmente o animal que fecundaria a fêmea, há pouco esquartejada. Depois vêm os outros animais abatidos, que desaparecem, um a um, diante dos nossos olhos desolados.
Tal era a rotina da empresa nipo-brasileira que operou de 1958 a 1987, naquela praia, em Lucena. Durante a temporada de caça, dia após dia, noite após noite, centenas de funcionários cumpriam suas tarefas macabras, obtendo assim “matéria-prima” para exportação ou consumo interno. E isso vinha de longe. Desde a época colonial, quando as armações experimentaram seu apogeu, a sina dos grandes mamíferos marinhos tem sido permeada por longos rastros de sangue, presa aos arpões dos barcos caçadores.
O que se fez no Brasil durante quatro séculos, em detrimento das baleias, corresponde a um autêntico biocídio. Embora a Lei dos Cetáceos tenha proibido a caça, a partir de 1987, ainda hoje existe gente se mobilizando politicamente para a retomada dessa atividade cruel e inconstitucional. Por isso todo cuidado é pouco, mesmo porque as lições da história são pródigas em mostrar numerosos exemplos de triunfo do interesse econômico sobre a proteção ambiental.
As baleias, como quaisquer outros animais, merecem viver em paz, independentemente da eventual serventia que possam ter ao ser humano. É que elas também são sujeitos de direitos e deveriam ser tratadas com respeito e dignidade. Não pensam assim, todavia, as nações exploradoras dos cetáceos, apesar dos protestos ambientalistas contra sua atividade perversa. No Brasil, o que aconteceu no litoral paraibano ainda paira sobre nós como uma ameaça.
Vê-se, ao longe, o último barco-caçador. É o navio “Cabo Branco”, ancorado na memória das nossas inquietações. Adormecido na proa, ali está o canhão impiedoso que ceifou a vida de milhares de criaturas inteligentes e sensíveis, que vieram para celebrar a vida e encontraram o espectro da morte. Um navio-fantasma. Tanto que as águas ao seu redor parecem rubras, vestígios de um tempo que não se apaga. Em volta desse cenário morto – ossos, ferrugem, mato crescido, urtigas, fotografias desbotadas, gritos submersos -, alguma coisa parece ainda estar muito viva em nós. É o medo de que um dia o pesadelo possa retornar.
Por isso é que Verônica Martins de Souza e eu decidimos escrever sobre o assunto. Para jamais esquecer. A íntegra do texto pode ser vista na edição n. 5 da Revista Brasileira de Direito Animal, a ser lançada no II Congresso Mundial de Bioética e Direito dos Animais, em Salvador, de 25 a 28 de agosto de 2010, oportunidade em que ela irá palestrar sobre o tema. Vale a pena conferir.