(da Redação)
Quando três guaxinins chegaram no atendimento de emergências do Centro de Vida Selvagem de Kentucky em abril de 2012, “eles estavam magros”, disse Karen Bailey, que gerencia a clínica de reabilitação. “Eles estavam quase mortos”.
Bailey é especialista em guaxinins recém-nascidos. Ela também cuida de outras espécies de animais selvagens que chegam ao local feridos, como gambás e lontras. Embora ela atenda cerca de 800 animais por ano – incluindo aproximadamente 300 filhotes de guaxinins – ela ainda guarda na memória aqueles três filhotes. Eles não eram “quaisquer” guaxinins. Eles foram as “estrelas” de um dos episódios mais vistos do programa Call of the Wildman – aqui no Brasil com o nome Ernie ao Resgate – um reality show do Animal Planet.
Quando filhotes estão em estado tão crítico, Bailey diz que é “uma corrida contra o tempo”. Os animais foram incubados e entubados, receberam fluidos e antibióticos. Em um gesto de última tentativa, Bailey administrou plasma sanguíneo e conseguiu salvar dois dos guaxinins. “Foi um milagre”, disse ela.
O que se vê nos programas do Animal Planet é falso, forjado, e oculta um inimaginável abuso aos animais, que são capturados, maltratados, drogados e mortos. As informações são da Mother Jones.
Realidade Guiada
Call of the Wildman atrai mais de um milhão de espectadores. No quarto trimestre de 2011, foi a série mais assistida da rede. Quando o episódio sobre os filhotes de guaxinim chamado “Baby Mama Drama” foi ao ar em julho de 2012, ele conquistou a audiência de 1,6 milhões de espectadores e tornou-se o episódio mais visto até então. Graças a Call of the Wildman, a Discovery Communications, empresa proprietária do Animal Planet, figurou entre as três redes que mais cresceram em 2012. A tendência continuou em 2013.
O programa consiste em uma série de aventuras de Ernie Brown Jr., conhecido como “Turtleman”, tido como um resgatador de animais selvagens. Vestindo um chapéu de abas largas, Turtleman captura criaturas que supostamente estariam causando transtornos para pessoas ou empresas, com seu amigo Neal James a tiracolo e sempre com as mãos vazias. Para a produção desse programa, o Animal Planet contratou a empresa Sharp Entertainment, especializada no modelo denominado “realidade guiada”, no qual as histórias são produzidas, diferente de um reality show propriamente dito.
A Discovery Communications declarou: “Nosso comprometimento para criar programas inovadores e criativos é igualado apenas pelo nosso firme compromisso com a honestidade e integridade em tudo que fazemos”, e que espera que as pessoas contratadas “cumpram os mesmos padrões éticos e legais”.
Mas o incidente com os guaxinins é apenas um dos inúmeros exemplos de episódios da série em que ocorrem maus-tratos a animais e possíveis infrações a leis estaduais e federais. Uma investigação de sete meses da Mother Jones – com base em documentos internos, entrevistas com oito pessoas envolvidas com a produção e registros do governo – revelou evidências de atividades ilícitas, tais como a utilização de um animal que havia sido drogado com sedativos (em violação a leis federais); envio de caçadores em busca de animais selvagens, que foram “apanhados” novamente como parte de um roteiro; e o preenchimento incorreto de documentos legais detalhando as atividades dos funcionários do Serviço de Vida Selvagem de Kentucky.
Quando questionada sobre essas alegações, o Animal Planet organizou uma entrevista com a Sharp Entertainment que incluía Matthew Hiltzik, um famoso gerenciador de crises de Manhattan que já trabalhou para celebridades como Justin Bieber. Os produtores disseram que investigaram denúncias de maus-tratos a animais que foram trazidos à sua atenção em maio do ano passado, por um funcionário. “Nós sempre fizemos o tratamento humano dos animais a nossa prioridade”, disse Dan Adler, vice-presidente sênior da Sharp.
A Sharp afirmou ter introduzido novas diretrizes escritas para a equipe de campo após as denúncias terem vindo à tona e, pela primeira vez, contratou um tratador de animais licenciado quando as filmagens começaram de novo em torno de 22 de maio do ano passado.
No entanto, Adler disse que a rede não tem a intenção de retirar os episódios de circulação, ainda disponíveis para download e previstos para serem reprisados. “O que descobrimos nessas investigações nos fez sentir confortáveis com a exibição dos programas”, diz ele.
Na entrevista e nos e-mails, os produtores admitiram que alguns animais tinham sido indevidamente manipulados, mas atribuíram isso à suposta atitude errada por parte de fornecedores. “A pessoa que está fornecendo esse animal para a produção é responsável por aderir a tais requisitos legais”, diz Patricia Kollappallil, vice-presidente sênior de Comunicação do Animal Planet.
O coiote
Uma foto obtida pelo Mother Jones de um funcionário que trabalhou na produção, mostra um coiote que foi capturado, a pedido de produtores e colocado em uma armadilha apertada por um período indeterminado de tempo antes de gravar em locações em Kentucky, de acordo com a pessoa que obteu a foto. No momento das gravações, segundo dois contratados que trabalharam na produção, o coiote estava “doente e não responsivo” e teve de ser substituído.
Documentos internos e análise da foto revelam que o coiote doente tinha sido mantido em cativeiro por mais de três dias depois de ter sido preso por um operador de controle de vida selvagem licenciado que trabalha para o show. O estado de Kentucky proibe a manutenção de animais selvagens capturados por mais de 48 horas, sem uma autorização específica, que o operador não tinha.
O episódio dos guaxinins
No episódio dos guaxinins, o desafio de Turtleman é prender um animal que está aterrorizando uma família de Kentucky que teme que o mesmo transmita raiva. A locução avisa: “A investigação de Turtleman é a última chance desta criatura não ter uma morte prematura”.
Brown e James localizam o animal na lavanderia e, em uma sequência de captura dramática, Turtleman pega o animal. Ele, então, descobre o verdadeiro “problema”: “Essa guaxinim não ter raiva, ela tem bebês!”. Em tom de suspense, Turtleman carrega a mãe enjaulada pela casa, com o intuito dela chamar seus filhotes. Como sempre, há um “final feliz”, mãe e filhotes a salvo em um santuário de vida selvagem, e a família de humanos não está mais “em risco”. “Nós não tínhamos ideia de que havia bebês debaixo da casa, foi uma grande surpresa!”, diz a proprietária Tina Merrick diante das câmeras.
Na verdade, como acontece com grande parte dos episódios do programa, a situação foi inventada. Michael O’Bryan, veterinário do Broadbent Wildlife Sanctuary, para onde os guaxinins foram levados para serem filmados após o resgate, disse que o “guaxinim mãe” era na verdade um macho.
Três fontes envolvidas com o show confirmaram que os produtores normalmente adquirem animais de fazendas ou de caçadores e armam encenações de resgate falsas, em cenários adaptados às especificações. Produtores da Sharp vão tão longe que fazem excrementos falsos de animais para a encenação, usando chocolate e arroz.
“Era parte do meu trabalho contratar pessoas para capturar animais para os programas”, disse Jamie, que trabalhou para a Sharp (o nome de Jamie foi alterado, pois a Sharp exige que funcionários e participantes assinem acordos de confidencialidade que exigem até 1 milhão de dólares de indenização por danos, se violada). “Tudo é 100% falso”, disse uma segunda fonte da produção.Em outras palavras, os guaxinins não foram “encontrados” sob a casa, nem se reuniram com sua mãe. Eles foram capturados na natureza e explorados para serem os “artistas” da série.
O Animal Planet e a Sharp admitem que os resgates são encenados, mas alegam que o uso de animais pode ser visto sob outra ótica, argumentando que os animais utilizados no programa são resgatados por policiais licenciados e que poderiam ser sacrificados. “O Call of the Wildman lhes dá outra chance. Orgulhamo-nos o fato de que muitos desses animais são considerados um incômodo no estado de Kentucky e seriam exterminados quando capturados, mas os animais apresentados em Call of the Wildman são realocados”, diz Adler. “E isso é uma parte importante do show, para nós”.
Bailey diz que é possível que os filhotes de guaxinim poderiam ter morrido em estado selvagem, mas nada se compara ao estresse que passaram ao terem sido capturados e submetidos às filmagens. Uma vez que eles estavam em posse do show, segundo ela, cada hora adicional longe do cuidado apropriado colocava-os em maior perigo. “Estes animais foram submetidos ao cronograma de produção de alguém, ao esquema conveniente para um set de filmagem, e você está lidando com animais recém-nascidos que precisam de cuidados pontuais, então está tudo errado”, disse ela.
As leis de Kentucky proíbem com veemência não fornecer alimentação adequada, água ou cuidados de saúde a um animal. A Animal Legal Defense Fund classificou Kentucky como o pior estado americano para a proteção animal durante os últimos sete anos, em parte devido à fraqueza da legislação.
Os morcegos no salão de beleza e a zebra drogada
Documentos e fontes também levantaram questões preocupantes sobre filmagens em um salão de beleza do bairro de Montrose, em Houston, em abril do ano passado. Turtleman é convidado pela proprietária Velma Trayham a descobrir o motivo de um barulho que estavam ouvindo no salão, e então Turtleman “descobre” um grupo de morcegos no local.
O Animal Planet e a Sharp reconheceram que os morcegos foram colocados no salão de beleza com a finalidade de fazer a filmagem, mas afirmam que isso aconteceu de forma legal. “Todos os envolvidos na produção de Call of the Wildman estavam cientes de seguir todas as leis, estaduais e federais, e eles sabiam que tinham que respeitá-las em todos os aspectos”, disse Adler.
Nas semanas após as filmagens, conforme os documentos mostram, o Animal Planet contratou uma empresa de controle de pragas para remover morcegos mortos do salão em duas ocasiões. A proprietária do salão recusou-se a dar entrevistas, e desde então o salão está fechado.
Em outro episódio, filmado no Texas, Turtleman persegue uma zebra que supostamente escapou de seu cercado em um rancho. Ele sai de caminhonete em perseguição ao animal, segurando um laço; eventualmente ele encurrala a zebra e “consegue” capturá-la.
Mas, nos bastidores, as coisas eram muito mais sombrias. Fontes de produção disseram que a zebra parecia tonta durante as filmagens, e que mal conseguia andar. Os regulamentos federais para expositores de animais especificam que “drogas, como tranquilizantes, não devem ser usadas para facilitar ou permitir a manipulação pública dos animais”, e que o manuseio dos animais não deve “causar traumas, estresse comportamental, danos físicos, ou desconforto desnecessário”.
Posteriormente, o Animal Planet e a Sharp confirmaram à Mother Jones que a zebra foi drogada antes das filmagens, pois o animal comportava-se de maneira descontrolada, parecia fora de si e “caiu várias vezes”. “Ele foi sedado para que parecesse menos louco”, declarou um funcionário. O Animal Planet admite que os produtores utilizaram uma zebra adicional, não sedada, para filmagens complementares.