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RECORDE NEGATIVO

Intenso e precoce, padrão dos incêndios florestais no Brasil mudou em 2024, afirma pesquisador do Copernicus

Especialista ligado à pesquisa da mudança climática no observatório europeu comenta sobre como o fogo está afetando áreas diferentes e maiores, e emissões de carbono vêm batendo recordes, como mostram dados

3 de setembro de 2024
Marco Britto para Um Só Planeta
13 min. de leitura
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Foto: Jader Souza/AL Roraima

A temporada de incêndios no Brasil vem registrando um padrão de intensidade acima da média em 2024, especialmente em biomas como Amazônia e Pantanal. Dados de plataformas de monitoramento oficiais, tanto do Brasil quanto internacionais, apontam que até este mês de setembro, o país presencia um ano de recordes, com o perigo de fogo mais alto já registrado devido à junção de seca, calor e ventos, além de áreas recordes atingidas pelo fogo.

Mark Parrington, pesquisador sênior do observatório europeu Copernicus, afirma que chama atenção uma mudança de padrão recente nos incêndios florestais do Brasil. “Mudou muito nos últimos 20 anos. Por exemplo, o estado do Amazonas, nos últimos cinco, seis anos, disparou. Então, eu acho que sobre mudar o padrão, mudar a frequência e o início da temporada de incêndios, certamente este ano se destaca por ser diferente dos anos anteriores.”

Na maior floresta tropical do mundo, 2024 teve o pior agosto registrado em relação a área queimada, chegando a 3,9 milhões de hectares, queimando em um mês mais terreno do que os primeiros oito meses de 2020, até então o ano mais severo em área queimada no bioma. O total acumulado deste ano ultrapassa 5 milhões de hectares atingidos pelo fogo.

Na Amazônia Legal, que inclui partes do Maranhão e Tocantins, o número “explode” para 19,5 milhões de hectares, área duas vezes o tamanho da Escócia, segundo dados do Copernicus. Igualmente um recorde para os oito primeiros meses do ano, superando a marca anterior de 12,1 milhões de hectares.

No Pantanal, até agora 2024 tem a maior área queimada já registrada para o período, com 2,5 milhões de hectares, segundo o Lasa/UFRJ (Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro). O dado excede em 1 milhão de hectares, ou campos de futebol, o mesmo período de 2020, até então o ano de maior dano no bioma.

Parrington, que participa do monitoramento considerado referência mundial para incêndios florestais, conversou com Um Só Planeta sobre a situação do país este ano, e fez um alerta sobre o perigo da fumaça dos incêndios para a saúde humana, uma ameaça que, nas palavras do pesquisador, “não conhece fronteiras” e deve ser uma preocupação de todos. Leia a entrevista a seguir:

Um Só Planeta: Vários indicadores mostram que estamos cruzando uma linha este ano em termos de incêndios florestais e suas emissões. E também, a temperatura do mundo continua subindo. O que está acontecendo?

Mark Parrington: Eu acho que em toda a América do Sul central, em geral, temos visto condições muito mais secas e temperaturas mais altas. Na região do Pantanal, tem estado mais quente e seco.

Nós sabemos que as condições têm sido ideais para incêndios de alta intensidade e em grande número. E isso já vem acontecendo há alguns meses, em maio na Bolívia, no Pantanal em julho… O que isso significa é que na Bolívia e em partes do Brasil, como o Mato Grosso do Sul, as emissões do ano até agora já são as mais altas, no estado do Amazonas também, embora esses incêndios fortes tenham se desenvolvido um pouco mais recentemente, em agosto. O que mostramos em nossos artigos é que este é um sinal positivo para condições mais secas onde estes incêndios têm queimado.

O que esses sinais nos mostram em termos de mudança no clima, estamos vivendo um novo normal, uma nova situação permanente?

Não fizemos análises nesse nível, mas acho que pelo menos nossos dados estão mostrando que, para as planícies alagadas do Pantanal, apesar de não ser o primeiro ano em que há grandes incêndios, é algo que não víamos nos dados há 15, 20 anos. Houve destaque para os incêndios entre 2020 e 2021, mas o que percebemos é que houve incêndios naquela região todos os anos desde então.

Este ano, como eles estão acontecendo desde o final de maio [antes da época esperada], parece que, para uma região conhecida como a maior zona úmida do mundo, não deveria haver tantos incêndios. É um sintoma de quão anormalmente seco está aquela região, o que é válido também para a Bolívia este ano.

Podemos descrever isso como um padrão?

Provavelmente sim. Eu meio que hesito nisso porque temos um conjunto de dados de 22 anos, então para realmente estabelecer um padrão ao longo de um longo período de tempo, essa amostra não é tão grande. Mas, pelo menos ao longo do que vimos nos últimos cinco anos, comparado ao que vimos em um período de cinco anos há 20 anos, claramente o padrão mudou.

Observamos as emissões de incêndios em todo o mundo, sabemos onde estão os locais, sabemos a intensidade relativa e quanto eles estão emitindo, em que época do ano. E se fizermos essa análise, que fazemos rotineiramente observando onde os locais de incêndio estão relacionados a essas anomalias climáticas, elas quase sempre acontecem onde há anomalias secas na umidade do solo.

Não é apenas a temperatura, é realmente o teor de umidade no solo, o efeito dos déficits de precipitação na umidade do solo, hidrologia, dados de meteorologia… Isso dá uma indicação de quão provável é que a vegetação queime e em que grau [o chamado risco de fogo no Pantanal e na Amazônia é o mais alto desde 1980]. Então, provavelmente não é uma surpresa que os lugares que têm anomalias mais secas são onde a maioria dos incêndios parecem estar ocorrendo ao redor do mundo.

As conclusões do estudo State of Wildfires são muito consistentes com o que vemos no Brasil este ano: condições mais severas de seca e incêndios florestais intensos, com mais emissões. O risco de incêndios florestais nunca foi tão alto. O sr. concorda?

A análise que fizemos apoia essa observação. Essas condições de seca não são algo que acontece apenas neste ano, mas um acúmulo de muitos anos. Uma das principais coisas que nossos dados mostram, para o Amazonas e Mato Grosso do Sul, é que [a temporada de incêndios começou] várias semanas antes. A curva para o Amazonas especificamente realmente supera todos os anos dos últimos 20 anos.

Talvez seja esse o ponto, porque em termos de padrão, mudou muito nos últimos 20 anos. Por exemplo, o estado do Amazonas, nos últimos cinco, seis anos, disparou. Então, eu acho que sobre mudar o padrão, mudar a frequência e o início da temporada de incêndios, certamente este ano se destaca por ser diferente dos anos anteriores.

Eu tenho os mapas da potência de fogo deste ano e há muito mais pontos vermelho-escuros do que havia no ano passado e no ano anterior. Então, há alguma indicação de que há mais incêndios em uma intensidade mais alta, o que estaria contribuindo para maiores emissões.

O que é importante a sociedade entender sobre o estado atual dos incêndios florestais, globalmente?

A ideia de que a frequência de incêndios está aumentando em biomas que podem não ter originalmente um habitat para incêndios florestais. Em algumas dessas regiões, havia algumas expectativas de que, sob as certas condições da mudança climática, o fogo poderia ocorrer, como no Ártico, por exemplo, em 2019, com ocorrências em grande escala. Os incêndios australianos em 2019 e 2020, alguns deles aconteceram em partes da floresta tropical australiana pela primeira vez em mais de mil anos. Acho que é isso que ajuda a trazer você para a questão.

Estamos falando de partes do mundo que não tiveram um histórico de incêndios florestais pelo menos nos últimos 20 anos, e essas são as regiões onde começamos a ver esse crescimento real e notável nas emissões oriundas de incêndios florestais, o que aponta o quão incomum é essa situação.

O que está em jogo com esses incêndios mais intensos?

Quando você vê uma faixa de fumaça indo de um lado do oceano para o outro, não é incomum que essas coisas aconteçam, mas a periodicidade e a quantidade relativa de fumaça que está sendo transportada é a mensagem, eu acho, para mostrar por que devemos nos importar com o que acontece em outro continente ou em outro lugar.

Quando se trata de falar sobre essas emissões de incêndios florestais e por que devemos nos importar, sugiro dar um passo para trás. Nós [no Copernicus] mostramos as emissões de carbono, porque esses são parâmetros relacionáveis ​​e você pode comparar com as emissões de combustíveis fósseis para ter uma noção da escala. Sempre destaco quando falo sobre isso que, ao deixar de lado as emissões de carbono, essa tendência que vemos nas emissões se aplica a tudo emitido na fumaça, uma ampla gama de poluentes atmosféricos muito tóxicos, então há um impacto direto desses incêndios nessa escala, com riscos à saúde humana por meio da degradação da qualidade do ar.

Como esses incêndios [no Brasil] já estão queimando há várias semanas, e há o acúmulo de fumaça, temos a previsão que mostra a fumaça se estendendo do Equador, Colômbia, até São Paulo e para o Atlântico, e quase até o oceano Antártico.

Acho que uma maneira de pensar sobre isso é que, mesmo estando longe desses incêndios, essa fumaça e a poluição dela não conhecem fronteiras, nem mesmo fronteiras continentais, então podemos ver esse transporte de longo alcance e todas as pessoas que vivem em diferentes continentes estão conectadas por composições atmosféricas e a qualidade do ar.

Como os incêndios florestais podem estar sabotando os planos dos países de cortar emissões? Há pesquisas apontando que as florestas estão queimando em um ritmo em que não recuperarão essas emissões tão cedo. E a emissão de incêndios florestais, no caso do Brasil, é ignorada nos cálculos das emissões de gases estufa do país.

Brasil e Canadá são dois lugares onde as agências oficiais têm sido uma liderança em sensoriamento remoto relacionado à atividade de incêndio florestal e emissões estimadas do fogo, com cientistas do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], e também do Environment Canada. São provavelmente os dois países com alguns dos melhores registros em estimativas de emissões de incêndio. Para responder à pergunta: não é tão simples quanto parece.

Relacionar os incêndios florestais com as outras emissões de gases estufa ainda é um grande desafio. Acho que o que podemos dizer é que, quando temos dados quase em tempo real, podemos perceber as emissões instantaneamente e entender a escala relativa disso, como isso está mudando, e podemos supor que a contribuição [dos incêndios florestais] pode estar mudando para as emissões de gases de efeito estufa dos países.

O tema da neutralidade de carbono dos incêndios florestais vem sendo discutido há algum tempo. A ideia de que a floresta queima, mas a vegetação volta no inverno ou na estação chuvosa e reabsorve muito do carbono emitido. Parte disso provavelmente ainda é verdade, porém a questão é se os incêndios estão em uma escala tal que estejam desequilibrando o equilíbrio do ciclo do carbono, de modo que isso não seja mais viável… E eu não sei dizer, não temos dados sobre isso, e não podemos realmente calcular isso “on the fly” [de forma rápida]. E esses são números que controlam os projetos de carbono quando eles divulgam seus relatórios.

Você pergunta se há algo mudando no processo físico que pode dar aos incêndios um peso maior. No ano passado, as academias nacionais nos Estados Unidos tiveram este workshop sobre quantificação de emissões de gases de efeito estufa de incêndios florestais e onde e como eles poderiam ser contabilizados nos inventários nacionais de gases de efeito estufa. Não acho que eles tenham chegado a conclusões sólidas, ou obtido uma estimativa confiável.

Mas ainda assim, volto novamente para a questão da qualidade do ar. Você tem benzina, matéria particulada, toda uma gama de produtos químicos muito tóxicos que têm sua própria estratégia de redução de emissões, e os incêndios florestais se somariam diretamente a essas emissões, porque alguns desses poluentes não são reabsorvidos pela biosfera. [As relações entre] CO2 e gases de efeito estufa são um pouco mais um equilíbrio de fluxo acontecendo entre eles. Mas sim, a questão do impacto dos incêndios sobre as estimativas de gases estufa é interessante, uma pergunta sobre a qual ainda não temos dados suficientes para responder.

Fonte: Um Só Planeta

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