Cidades debaixo d’água, biomas pegando fogo, rios secos e recordes de calor. Todos esses extremos climáticos foram vivenciados em 2024. Para a escritora e ativista Hellen Lirtêz, este ano pode ser comparado com uma “chaleira fervendo”. Moradora de Rio Branco, no Acre, Hellen vivenciou a enchente que atingiu o estado em março.
Das 22 cidades acrianas, 19 decretaram emergência, o que configura 86% do estado. O número de atingidos ultrapassou 120 mil pessoas. Na avaliação dos órgãos de Proteção e Defesa Civil do Estado, este pode ser considerado o maior desastre ambiental do Acre.
“A gente tem o ano todo para se planejar para as enchentes, mas isso não acontece. O planejamento só acontece quando a enchente chega. Tinha que ter um plano de prevenção e adaptação climática”, afirma Hellen. Na avaliação da escritora, é necessário que o país olhe com mais atenção para as pessoas mais vulneráveis.
“A gente precisa que os governantes pensem os planos de ação com os povos indígenas, os quilombolas e as periferias, pois cada território tem especificidades. Por exemplo, os indígenas perdem todo o roçado, aí vem a insegurança alimentar. Tem as crianças ribeirinhas, que dependem do rio para ir para a escola, mas aí o rio invade a casa delas. Nas periferias, quando há alagamentos, a criança também fica impedida de se deslocar e acaba perdendo dias de aulas. Falta um olhar humanitário e ouvir as urgências dessas pessoas”, cita Hellen.
Outro estado atingido por enchente neste ano foi o Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, o nível do rio Guaíba chegou a 5,33 metros em maio — a altura da água superou o recorde histórico da inundação de 1941. Segundo o governo gaúcho, a enchente causou a morte de mais de 180 pessoas. Ao todo, 478 municípios do estado foram atingidos.
Neste mês, a atriz australiana Cate Blanchett, que é embaixadora da Boa Vontade da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), visitou Porto Alegre, Taquari e Cruzeiro do Sul. Ela esteve com refugiados e pessoas que perderam casas após a enchente.
“Todos os refugiados que conheci no Brasil experimentaram o duplo, às vezes, triplo, horror de serem forçados a se deslocar, não uma ou duas, mas três vezes — cada vez perdendo tudo e tendo de reconstruir suas vidas do zero. Cada vez com mais frequência, esse deslocamento é causado por eventos climáticos extremos”, relatou Cate.
Além das pessoas, os animais também foram muito afetados pelas fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul. Comovida com a situação, a voluntária Marina Soares saiu da Zona Sul de São Paulo e foi até Novo Hamburgo. Ela conseguiu arrecadar mais de 1 tonelada de ração e 500 cobertores.
“Descobri um ginásio que abrigava pessoas, e do lado tinha um galpão com os cachorros desses moradores que perderam tudo. Eu vi que ali eu tinha que destinar uns 70% de tudo o que eu tinha levado. Tinham crianças de colo, adultos e idosos. E a situação dos cachorros de lá também era bastante precária”, relata a jovem. “Eu fiquei seis em Novo Hamburgo. Eu vi destroços e mobílias nas ruas, tudo empilhado e destruído”, acrescenta Marina.
Um dos momentos que mais marcou a voluntária foi quando ela encontrou uma cachorra abandonada perto de um lixo. O animal estava com fome e tremendo de frio. Então, Marina a resgatou, cuidou dela e conseguiu um novo lar para a pet em São Paulo. Segundo o governo do estado, mais de 10 mil animais foram resgatados em meio a tragédia climática.
Queimadas
A área queimada no Brasil de janeiro a novembro de 2024 quase dobrou em relação ao mesmo período do ano passado, totalizando um território equivalente a todo o estado do Rio Grande do Sul. De acordo com o relatório Monitor do Fogo, do projeto MapBiomas, 29,7 milhões de hectares foram queimados.
Mais da metade (57%) da área queimada entre janeiro e novembro no Brasil fica na Amazônia, onde 16,9 milhões de hectares foram afetados pelo fogo. O segundo bioma mais afetado foi o Cerrado, com 9,6 milhões de hectares devastados – sendo que 85% (ou 8,2 milhões de hectares) foram em áreas de vegetação nativa.
“Esse aumento desproporcional da área queimada no Brasil em 2024, principalmente a área de floresta, acende um alerta de que além de reduzir o desmatamento, precisamos reduzir e controlar o uso do fogo, principalmente em anos onde as condições climáticas são extremas e podem fazer o que seria uma pequena queimada virar um grande incêndio”, pontua Ane Alencar, diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e coordenadora do Monitor do Fogo do MapBiomas.
O estado que mais queimou nos 11 primeiros meses deste ano foi o Pará, com 6,97 milhões de hectares. Esse total equivale a 23% de toda a área queimada no Brasil e a 41% do que foi queimado na Amazônia entre janeiro e novembro.
Mato Grosso e Tocantins ficaram em segundo e terceiro, com 6,8 milhões e 2,7 milhões de hectares, respectivamente. Juntos, esses três estados totalizaram 56% da área queimada no período no país. Os municípios de São Félix do Xingu (PA) e Corumbá (MS) registraram as maiores áreas queimadas entre janeiro e novembro de 2024, com 1,47 milhão de hectares e 837 mil hectares queimados.
Seca em rios
Os rios Acre, Solimões, Paraguai, Araguaia, Madeira e Tapajós registraram as cotas mais baixas da história. Segundo a organização Greenpeace, a seca extrema na região Norte impactou populações vulnerabilizadas e evidenciou a falta de ações de adaptação climática nas cidades.
“Em 2024, pelo segundo ano consecutivo, a seca extrema afeta os estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Pará e Tocantins e, especialmente, quilombolas, indígenas, populações ribeirinhas, pescadores e pescadoras, populações pretas e periféricas e também pequenos agricultores”, frisou o Greenpeace.
Mudanças climáticas
A professora Isabel Belloni Schmidt, do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), explica que um dos impactos das mudanças climáticas no Cerrado é o atraso no início das chuvas. “Se a gente conversar com qualquer pessoa no Planalto Central, ela vai dizer: ‘olha, no começo de setembro chovia em Brasília e em Goiânia e hoje já não chove mais'”, cita a especialista.
Nesse sentido, os períodos de seca prolongados contribuem para a propagação de incêndios. “A única causa natural de incêndios são os raios. Na época da seca, a causa é sempre humana. O que vimos esse ano foram incêndios em proporções que, em alguns casos, nunca tinham sido vistas. Em Brasília, ficou praticamente seis meses sem chover, a vegetação ficou muito seca e a umidade baixa. Então, isso faz o comportamento do fogo mudar”, argumenta a professora.
Ainda segundo Isabel, há ainda outro cenário preocupante: a grande concentração de chuva em poucos dias. “Isso aumenta as chances de alagamento, como aconteceu no Rio Grande do Sul. Aqui em Brasília nós temos alagamentos em algumas regiões. Isso, claro, tem a ver com a urbanização, com como as cidades são estruturadas, mas também está relacionado com as mudanças climáticas”, cita.
A professora Isabel também lembrou do incêndio que atingiu o Parque Nacional de Brasília em setembro e consumiu mais de 2,4 mil hectares de vegetação, além de ter deixado animais feridos e ter encoberto o céu da capital de fumaça.
Na avaliação da especialista, a destruição poderia ter sido maior se não tivesse um bom manejo do integrado do fogo — estratégia que combina aspectos ecológicos, socioeconômicos e técnicos para prevenir, controlar ou usar o fogo em um território.
“Em termos de fogo e dos incêndios, teve um avanço grande, que foi a aprovação da Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo. Essa política traz um arcabouço legal robusto para a implementação em todo o Brasil de algo que está sendo feito nas unidades de conservação há dez anos, mas essas áreas correspondem a apenas 10% do território nacional. É muito mais barato fazer manejo de fogo do que combater incêndio. É necessário pensar em formas dos estados, dos municípios e das propriedades privadas também fazerem o manejo integrado do fogo”, defende a especialista.
Três perguntas para Diego Xavier, coordenador do Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz
Quais foram os principais fatores que influenciaram nos extremos climáticos vivenciados neste ano?
Entre os principais fatores, destaca-se a influência do El Niño, que contribuiu para o aumento das temperaturas globais e alterações nos padrões de chuvas, intensificando eventos extremos como secas e tempestades. O aquecimento das águas oceânicas, associado ao avanço do aquecimento global, também desempenhou um papel crucial, aumentando a quantidade de energia disponível para gerar eventos climáticos extremos. No contexto nacional, fatores como o desmatamento da Amazônia e a degradação de ecossistemas naturais, apesar de apresentarem diminuição, influenciam no desequilíbrio natural e potencializam os impactos dos eventos extremos.
Na sua avaliação, o que faltou, em termos de prevenção e enfrentamento, para que o país pudesse conseguir responder ao cenário de crise climática deste ano?
Faltou uma maior integração e fortalecimento das políticas públicas voltadas para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Os investimentos robustos em infraestrutura resiliente e de sistemas de alerta precoce não é homogêneo no país, com isso diversas regiões ainda são muito vulneráveis. Outro aspecto importante, é a necessidade de fortalecer a governança climática e a capacidade de resposta local, com medidas que envolvam a articulação entre os setores de saúde, meio ambiente e defesa civil, além de maior engajamento com a sociedade na implementação de planos de contingência.
Quais são as ações mais fundamentais, a curto e a longo prazo, que o país deve adotar para amenizar os impactos das mudanças climáticas?
A curto prazo, é fundamental implementar planos de contingência e sistemas de alerta precoce mais eficazes, garantindo a proteção da população em áreas de risco. É necessário também investir na adaptação de infraestrutura crítica, como redes de saneamento e transporte, e saúde para responder aos extremos climáticos. A longo prazo, o país precisa adotar políticas sustentáveis que incluam a redução do desmatamento, transição para uma matriz energética limpa e promoção de práticas agrícolas resilientes ao clima. Além disso, deve-se fortalecer os sistemas de vigilância em saúde e investir na educação ambiental, preparando a população para lidar com os desafios climáticos que se intensificarão nos próximos anos.
Fonte: Correio Braziliense