Apenas 35% das cidades litorâneas do Espírito Santo, estado considerado berço da desova de tartarugas no país, estão totalmente aptas, com delimitação de espaço e iluminação adequada, para receber os animais em temporada reprodutiva, que vai de setembro a março de todos os anos.
Das 14 cidades litorâneas capixabas, apenas cinco estão com a iluminação como determina a legislação em toda a orla. São elas: Itapemirim, Guarapari, Serra, Aracruz e Conceição da Barra. Este fator é importante porque a luz pode atrair as tartarugas e fazer com que o nascimento delas fique comprometido ou até mesmo levar a morte de mães e filhotes.
O Espírito Santo é um refúgio crucial para tartarugas marinhas. O estado abriga as cinco espécies encontradas no Brasil e é o principal ponto de desova da tartaruga-cabeçuda. Além disso, há mais de 40 anos é o refúgio da tartaruga-de-couro, criticamente ameaçada de extinção.
A iluminação artificial é um grande vilão para as tartarugas porque:
🌕 As tartarugas se orientam pela luminosidade natural;
💡 Com luzes de postes, ou o reflexo do conjunto de luzes gerado por lâmpadas (fotopoluição), o céu fica mais brilhante;
🐢 Com isso, os animais podem acabar confundindo a iluminação artificial com a lua e ficarem desorientados;
🚗 Desorientadas, as tartarugas (mães e filhotes) acabam parando no meio da avenida, e podem morrer atropeladas;
🦊 Quando não são atropeladas, ficam expostas a mais riscos e viram presas fáceis para os predadores.
Vulnerabilidade
O coordenador de Pesquisa e Conservação da Fundação Projeto Tamar no Espírito Santo, Alexsandro Santos, explicou que o cenário da escolha da praia à noite para as tartarugas poderem colocar seus ovos está relacionado à fuga do sol e de predadores. Isso faz com que não só os ninhos sejam feitos à noite, mas também os filhotes saiam nesse período.
“A desorientação dos filhotes e fêmeas ocorre porque quando elas estão em terra, o que orienta eles para o mar é a diferença de luminosidade, que mesmo pequena, existe em dois ambientes. O mar é mais claro do que a terra, então qualquer fonte de luz que seja mais forte que essa diferença vai atrair eles. Então, uma lâmpada, um horizonte luminoso atrás da praia, eles conseguem enxergar essa diferença”, pontuou o biólogo.
E quando os filhotes têm esse primeiro contato com a realidade, eles correm em direção ao mar orientados pela luminosidade que reflete em condições naturais.
Mas a iluminação artificial se tornou uma das principais ameaças ao ciclo de vida das tartarugas-marinhas porque elas desorientam os filhotes e impedem que eles cheguem ao mar. Com isso, elas se tornam presas fáceis ou morrem por desidratação.
” O filhotinho, quando ele sai do ninho, o mar seria a coisa mais clara que ele iria ver. Ele vê uma luz e se direciona para ela. A mesma coisa a fêmea. Ela sai da água, desova, e quando vai retornar para o mar, vê a luz mais forte e acaba indo em direção à luz. Aí eles ficam perdidas na restinga, ou acabam indo para as ruas. Cada espécie enxerga um pouquinho diferente. Normalmente, as luzes que menos desorientam os filhotes são as luzes amarelas. As brancas são as piores”, destacou.
A Fundação Projeto Tamar foi criada na década de 1980 e é reconhecido como uma das iniciativas mais bem-sucedidas de conservação marinha.
Mudanças
Para que as orlas não fiquem escuras e causem um sentimento de insegurança para a população, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em parceria com o Tamar, reforçou que as principais orientações são a mudança de ângulo dos postes e também a escolha das lâmpadas.
“As principais técnicas para o controle da dispersão da luminosidade para o mar envolvem a escolha da luminária, ajuste da altura e ângulo dos braços que fixam as luminárias aos postes, redução de potência e uso de anteparos, entre outras técnicas. Caso a adaptação da iluminação não consiga ser realizada a curto prazo, em casos excepcionais pode ser solicitado o desligamento das luzes durante a temporada reprodutiva. Não há uma lista definida dessas praias, mas o objetivo é sempre o ajuste da iluminação, e não o desligamento total”, apontou o ICMBio.
Até mesmo uma cartilha produzida é distribuída para conscientização não só de prefeituras, mas também de quem transita ou mora perto da orla, com dicas para escolhas de iluminação mais baixa e direcionada.
O órgão destacou que para implementar as mudanças em algumas praias do estado, foram necessárias reuniões com diversas prefeituras e portos.
Na Serra, na Grande Vitória, a mudança só veio em outubro deste ano, após diversos casos de tartarugas que ficaram desorientadas com a iluminação nas orlas de Bicanga e Balneário Carapebus. Com isso, os refletores que atendem a faixa de areia em 2,5 quilômetros das duas praias serão desligados a partir das 22h, e ficou mantido apenas a iluminação do calçadão.
A Prefeitura da Serra disse que a partir dados das últimas temporadas, disponíveis no Sistema de Informação de Monitoramento da Biota Aquática (Simba), na cidade a subida das fêmeas às praias para desova ocorre em maior quantidade a partir da segunda quinzena de outubro.
Por isso, os refletores vão continuar desligados durante o período de reprodução das tartarugas, de outubro a março, com um mês de diferença em relação ao início do período, que começa em setembro.
A prefeitura informou que cumpriu uma determinação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática e que a religação dos refletores em tempo integral só irá acontecer após o término do período de desova das tartarugas, ou seja, após o dia 31 de março de 2025.
O que diz a legislação
A legislação que ampara a redução de iluminação na orla, com o objetivo de proteger as tartarugas marinhas, é a Portaria IBAMA 11/1995, que proíbe qualquer fonte de iluminação que ocasione intensidade luminosa superior a Zero LUX, em uma faixa de praia compreendida entre a linha de maior baixa—mar até 50 metros acima da linha de maior pré-a-mar do ano (maré alta ou de sizígia).
Então, para poder manter o cenário de desova nas orlas do estado, a orientação feita pela Fundação Projeto Tamar, não só no Espírito Santo, mas para qualquer cidade do país que recebe as desovas, não é para desligar as luzes da orla, mas sim realizar ajustes.
As mudanças são essenciais para a sobrevivência das tartarugas, principalmente após levantamentos de especialistas terem apontado que a temporada reprodutiva das tartarugas marinhas de 2023/2024 já superou em 31,7%, com 797 ninhos, a temporada de 2022/2023, quando foram registrados 605 ninhos.
Com mais tartarugas chegando ao estado, se mostra essencial que as cidades litorâneas estejam preparadas para recebê-las.
Se a adaptação da iluminação não for realizada a curto prazo, o Tamar explicou que em casos excepcionais pode ser solicitado o desligamento das luzes durante a temporada reprodutiva.
Para verificar se a legislação está sendo cumprida, o ICMBio realiza vistorias noturnas. Caso a cidade esteja com a iluminação correta, o órgão emite um documento técnico que é encaminhado para a Secretaria Municipal de Meio Ambiente.
Mas, se ainda assim o problema não for resolvido, o Ministério Público pode abrir um inquérito ou ação civil pública, o que já aconteceu no Rio de Janeiro e Sergipe, mas por enquanto ainda não foi necessário no Espírito Santo.
Praias capixabas
Todas as cinco espécies encontradas no país desovam no estado. São elas: tartaruga-verde, tartaruga-de-pente, tartaruga-oliva, tartaruga-cabeçuda e tartaruga-de-couro, também conhecida como tartaruga-gigante. Mas as principais espécies que desovam no litoral são a tartaruga-cabeçuda e a tartaruga-de-couro.
Segundo o a Fundação Projeto Tamar, os municípios que formam a área prioritária de desova de tartarugas marinhas no estado são Linhares, São Mateus e no norte de Aracruz (praia de Comboios). São neles em que há registro do maior número de ninhos.
Embora Linhares concentre um grande registro de ninhos, a cidade ainda está no processo de adequação das luzes da orla, e não informou uma previsão para conclusão (confira a nota na íntegra no final da reportagem).
Ainda de acordo com o órgão, outros municípios, como Serra, Guarapari, Anchieta e Conceição da Barra recebem desovas regulares que, embora em menor número, também devem ser protegidas, considerando que as tartarugas marinhas estão ameaçadas de extinção.
Aumento de ninhos
O fenômeno climático El Niño vem aumentando a temperatura não só no Brasil, mas em todo o mundo e fez com que 2023 batesse recorde de calor e se tornasse o ano mais quente. Mas os efeitos desse fenômeno também podem estar afetando a vida marinha. Especialistas acreditam que águas mais quentes podem ter ajudado no aumento de ninhos de tartarugas no litoral do Espírito Santo.
Um levantamento apontou que a temporada reprodutiva das tartarugas marinhas de 2023/2024 já superou em 31,7%, com 797 ninhos, a temporada de 2022/2023, quando foram registrados 605 ninhos.
Os dados são da Ambipar Environmental Response, atual responsável pela execução do Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Campos e do Espírito Santo (PMP-BC/ES).
Segundo o coordenador Alexandro Santos, um aumento de ninhos de tartaruga vem sendo percebido há alguns anos, mas não era tão expressivo. Por isso, o El Niño pode estar interferindo nesse aumento.
“Pode ser um aumento de população. Um ano só não diz muita coisa, a gente vem em uma crescente de aumentos menores, mas era de 5%, 10%. A última vez que a gente teve um salto desses foi no ano de 2015, que também foi um ano muito quente e de El Niño”, contou.
Fonte: G1