A cachorrada de rua, abandonada à própria sorte por seres humanos, que não moram nas ruas, acaba ocasionando uma série de incômodos à “harmoniosa” convivência de outros humanos que passam pelas ruas. E o problema da convivência com o bicho-homem não se restringe unicamente aos cães vadios. Há o problema do cachorro do vizinho humano, que fica latindo a noite inteira, perturbando o sono alheio de outros vizinhos humanos. Que cão filho da mãe! Só podia ser filho de uma cadela, mas que, de tanta graça e presteza, é a mais bela e zelosa dentre elas. Que destino impuseram-lhe ao seu filho? Está num mato sem cachorro. Ou melhor, está numa selva de pedras com cachorro, e com humanos. Em troca de comida e quem sabe (Deus queira), de afeto, lhe caberá a vigilância da casa inteira, do interior ao pátio, do piso ao teto. É o destino amargo de um cão feito guarda, que guarda a tudo e a todos sem poder guardar a si mesmo, sua vida e sua dignidade. Que triste sina canina: condicionado a proteger humanos de outros humanos, acaba incomodando a outros humanos. Que mundo cão! Não, não, não! Que mundo humano!
Nas ruas, perambulam por todos os cantos cachorros de toda a ordem: vira-lata, entra-lata, sai-lata, rasga-saco, fura-saco, fuça-lixo, cata-restos etc. É um se vira nesse vira e revira da sobrevivência, em que disputam as sobras com humanos, no intuito de escapar da perseguidora falência. Lá estão eles nas esquinas, sozinhos ou em grupos, deitados ao sol ou revirando latas de lixo. As costelas magras apertam a pele de um corpo faminto e enfraquecido pela subnutrição. A pata traseira mal consegue ser erguida para coçar a orelhinha sardenta. Puxa, além de todos os padecimentos, a imundície das ruas lhe trouxe mais este tormento. Que sarna! Ainda bem que não é sarna humana… E cada um pode conviver com a sua sarna sem correr o risco de poder recebê-la e transmiti-la de um para outro.
Nas noites gélidas de inverno, o frio castiga um corpo trêmulo, marcado por um descompassado bater de dentes. No sol escaldante do verão, o calor traz uma sede implacável. Onde encontrar água por essas ruas empedradas e asfaltadas? Que natureza estranha e hostil à sobrevivência de um cão abandonado nesse mundo humano! Quanto martírio! Quanto sofrimento e tristeza de uma sobrevivência abandonada! É assim que são tratados aqueles que são considerados os melhores amigos dos homens?
Mas não há motivos para se surpreender com o mundo humano. Quem abandona os próprios seres que gerou se importará muito menos com o abandono de seres diferentes.
E os cães abandonados ficam aguardando um gesto de resgate, de generosidade e de responsabilidade daqueles que lhes tiraram da vida selvagem para vivenciarem não só a domesticação, como também a convivência de uma evolução.