Humana Festa, romance em língua portuguesa escrito por Regina Rheda, é a primeira obra da literatura nacional cuja temática principal é o modo de vida vegano e suas implicações individuais e sociais. Permeada por perspicaz humor – o wit¹ –, a construção do texto cativa, mas não a ponto de banalizar o tema. Incentivando o olhar crítico do leitor em direção às relações entre animais humanos e não humanos, tais questões são abordadas com apoio nas teorias sobre os direitos animais dos filósofos Tom Regan e Gary Francione, ambos traduzidos para o português por Rheda.
O enredo desdobra-se em dois núcleos, um situado nos EUA e outro no interior de São Paulo. Como protagonistas temos o casal composto por Megan – uma “americaninha” ativista pelos direitos animais, que tem sua mãe, a ecofeminista e bissexual Sybil, como suprema referência – e Diogo – herdeiro dos tradicionais produtores agropecuários Bezerra Leitão e que, por influência da namorada, decide tornar-se vegano. Eles residem na Flórida, nos Estados Unidos, onde Diogo frequenta aulas sobre ciências agrícolas, em um curso muito apreciado pelo pai latifundiário.
A visita do casal ao Brasil permite que a família de Diogo conheça a namorada. Na hora do almoço, à mesma mesa misturam-se a grande variedade de carnes preparadas para consumo dos onívoros e os pratos feitos com arroz, milho e tomate, cultivados na própria fazenda, para o casal visitante, que não escapa do inquérito aberto pela família para investigar o não consumo de derivados animais. Essa cena, por ser a junção dos extremos no que se refere ao tratamento dos não humanos – de um lado, os donos de fazendas pecuaristas e, do outro, os ativistas animalistas – ilustra o embate ideológico entre veganos e onívoros, por meio da dissonância entre os respectivos hábitos especialmente alimentares.
O núcleo brasileiro centra-se em dona Orquídea, possuidora de grande sensibilidade no que diz respeito aos animais não humanos. Sendo uma das empregadas da Fazenda Mato Grosso, é encarregada no dia a dia de servir lavagem aos porcos e tomar conta deles. Ela posiciona-se humildemente perante os outros, partindo do pressuposto de que por não saber escrever, seria incapaz também de mandar na casa, no chiqueiro, ou nela própria. Conhece a si mesma como “nasci[da] torta” (p. 91), porque se permite ao “luxo” de não concordar com os que a rodeiam quanto à objetificação de outras espécies e que reflete na sua alimentação desprovida de ingredientes animais.
A apresentação dos personagens dá-se através de estereótipos que podem ser explicitados, logo de início, na figura de Megan. Em um trocadilho com a palavra “vegan”, seu nome acaba por revelar todo o estereótipo do “vegano panfletário”, que com suas “pregações” incomodam muitos humanos à sua volta. Tanto irritam que em seu relacionamento com Diogo, eles estabeleceram um acordo: anotar em um bloquinho quando a ideologia atrapalha o relacionamento. Ele ganha pontos quando julga ser um exagero o discurso da namorada. Megan, por sua vez, sai em vantagem quando o namorado verbaliza alguma expressão que ofende os animais. Mas esse bloco de anotações reflete mais do que uma mera competição: ele resume as duas principais tensões entre o casal. A primeira é a ambígua situação de Diogo, como herdeiro de fazendas suinocultoras e possuidor de um histórico de “carnívoro inveterado” (p. 162), perante as indubitáveis certezas de Megan. A segunda é o medo manifestado por Diogo, próprio de um representante das mais altas classes sociais, de perder dinheiro para as classes tidas como “inferiores”.
Esse mesmo medo pode ser interpretado como combustível para, apesar da identificação com as práticas veganas, mostrar-se relutante quanto à prática vegana. Segundo a teoria do filósofo Tom Regan, um relutante adquire consciência sobre os direitos animais gradativamente, por meio de questionamentos e mudanças de hábitos contínuas. Deste modo, pode-se dizer que Diogo é apresentado como uma alegoria do conceito de Regan. Assim como Diogo, dona Orquídea é também representada em alegoria. Uma vinciana, de acordo com a terminologia de Regan, que designa indivíduos possuidores de afinidade natural, desde crianças, com outras espécies, direcionando-se a eles como “eu-tu” e não “eu-coisa” e que por isso desenvolvem a consciência dos direitos do outro indivíduo, seja ele de qual espécie for.
Algumas situações retratadas no romance também transpõem conceitos filosóficos. A esquizofrenia moral, concebida pelo filósofo Gary Francione, é “o modo ilusório, enganado, confuso de pensarmos sobre os animais em termos sociais e morais”, podendo revelar incoerência quanto ao modo de enxergá-los, “alguns são membros da família; outros são jantar”², por exemplo. A cena da assembleia de trabalhadores na venda do Norato é uma delas. Ao reunir-se para planejar uma ação direta contra os patrões exploradores, os empregados da fazenda dos Bezerra Leitão, incluindo o filho de dona Orquídea, Zé Luiz, discursam bravamente sobre a “opressão milenar” (p. 192) que sofriam e, quando questionados sobre a “judia[cão] e aproveita[mento] dos bichos para fazer a justiça dos homens” (p. 207), eles esquivam-se, desvalorizando os não humanos à situação, novamente, do nível mais baixo da hierarquia social ou, segundo Norato e Pardal, “se ela estava com dó dos porcos, o problema era dela” (p. 207).
Mais do que a correspondência entre a exploração humana, sofrida pelos trabalhadores da fazenda, e a exploração animal, os “produtos” a serem comercializados, o texto inclui também elementos análogos a outras minorias sociais. A conexão feita por Sybil, mãe de Megan, entre a nudez feminina em protestos contra o uso de peles e o sexismo evocado pelo meio publicitário para a promoção de produtos obtidos a partir da exploração animal. Os diálogos entre os personagens também revelam o machismo implícito na moral, como a reação de Zé Luiz, ao ver sua mãe ser caçoada pelo interesse em participar da assembleia dos trabalhadores: “não a trataria[m] com tão pouco caso se ela fosse homem ou, então, se tivesse marido” (p. 191). Mesmo expressões como “serviço de mulher” (p. 86), tão frequente no imaginário coletivo, revelam o preconceito consolidado linguisticamente que, aliás, é análogo à linguagem especista.
São perceptíveis algumas das características de Rheda em sua escrita. O enredo trabalhado em dois países, simultaneamente, já foi utilizado em outra obra que escreveu, “Pau-de-arara: Classe Turística”. Essa dupla identidade nacional configura-se a partir da mudança da autora, brasileira, para os Estados Unidos. Humana Festa, publicado em 2008 pela Editora Record, revela-se também o passaporte de entrada da temática vegana, trabalhada em um feito artístico, no meio intelectual brasileiro. Contrabalanceando temas terríveis com surpresas, humor e ironia, a teia de relações construída entre os personagens propicia, assim, prazer de leitura.
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¹ Segundo o Oxford Dictionary, wit é (1) a capacidade para pensamento inventivo e rápido entendimento; inteligência aguçada; (2) aptidão natural para uso de palavras e ideias de modo rápido e imaginativo para criar humor. (tradução livre).
² FRANCIONE, G. Uma observação sobre a esquizofrenia moral. Disponível em <http://www.anima.org.ar/libertacao/abordagens/uma-observacao-sobre-a-esquizofrenia-moral.html>. Acessado em 25 de julho de 2011.
Referências
FRANCIONE, G. Introduction to Animal Rights: Your Child or The Dog?. Philadelphia: Temple University Press, 2000.
Online Oxford Dictionary. Disponível em <http://oxforddictionaries.com/>. Acessado em 25 de julho de 2011.
RHEDA, R. Humana Festa. São Paulo: Record, 2008.
REGAN, T. Jaulas Vazias: Encarando o Desafio dos Direitos Animais. Porto Alegre: Lugano, 2006. Tradução: Regina Rheda. P. 25-28, 31-35.
Por Letícia Nakamura é graduanda em letras pela USP.