2023 ficará marcado como um ano de extremos. Será difícil esquecer dos incêndios florestais que devastaram ilhas no Havaí, das temperaturas recordes que vararam o globo e fizeram a estação mais fria do ano do Brasil ser considerada o inverno mais quente da história moderna do país, das cidades do Sul sucumbindo a enchentes históricas e, agora, uma seca sem igual na Amazônia.
A emergência climática é anunciada pelos cientistas há mais de meio século. Mas o que antes parecia abstrato, hoje se traduz em grandes tragédias. Até onde nossos olhos alcançam, o que vemos é ebulição. Mas só enxergamos a ponta do iceberg (que também degela). O aquecimento global não atinge apenas a superfície terrestre.
Por serem um dos maiores sumidouros de carbono do mundo, os oceanos têm sofrido silenciosa e profundamente. Desde o início da era industrial, a acidez das águas do planeta, provocada pela crescente concentração de CO2, aumentou 30%, um problema cuja dimensão mais famosa – e visível – é o processo de enfraquecimento da estrutura dos corais, que funcionam como megacidades submarinas, berçários da vida oceânica e fonte de sustento para milhares de comunidades no mundo.
O “retrato” mais recente da alta do termômetro marinho, divulgado nesta quinta-feira (26) no Ocean State Report, aponta que, em 2023, a superfície do mar atingiu a temperatura recorde de 21,1ºC, superando o recorde anterior, de 2016, e que várias áreas do oceano global sofreram ondas de calor marinhas intensas ao longo do ano. O aumento histórico da temperatura está provocando impactos negativos no clima, na biodiversidade e nas sociedades.
Elaborado com contribuições de mais de 80 especialistas de 30 instituições em 14 países, o Ocean State Report 7 indica que as ondas de calor marinhas estão se tornando mais comuns, o que ameaça alterar permanentemente os habitats naturais oceânicos e as cadeias alimentares, afetando todo o ecossistema. Além de prejudicar muitas espécies, o fenômeno afeta atividades humanas que dependem da saúde dos oceanos. O estudo é elaborado anualmente pelo Copernicus Marine Service, que fornece informações de referência regulares e sistemáticas sobre o estado do oceano físico e biogeoquímico em escala global.
Além disso, a elevação da temperatura das águas alimenta o degelo marinho. Segundo a pesquisa, o gelo da Antártida diminuiu drasticamente em 2023, atingindo, entre maio e junho, os níveis mais baixos desde o início dos registros, com a perda de 2,2 milhões de km2. Já o gelo do Ártico está reduzindo constantemente, perdendo aproximadamente 3,5 milhões de km2 desde 1979 – uma área sete vezes maior do que a Espanha.
Heróis e vítimas do clima
Os oceanos têm uma capacidade de armazenamento de calor maior do que qualquer outro componente do sistema climático da Terra: quase 90% do calor extra retido no sistema terrestre devido a atividades antropogênicas é absorvido pelo oceano, destaca o relatório. Mas o “heroísmo” acumulado ao longo do tempo também transforma os mares em vítimas do clima: “Nos últimos 15 anos, a taxa de variação do calor acumulado no oceano aumentou em quase 50% em comparação com a taxa de acumulação nos últimos 50 anos”, diz o estudo. Ao absorverem calor, as águas oceânicas expandem-se e contribuem ainda mais para o aumento do nível do mar, afetando estruturas e o modo de vida das populações que vivem perto dos litorais em todo o mundo.
Outro efeito colateral do aquecimento dos mares é a mudança de salinidade (quantidade de sal dissolvida na água), dada a evaporação oceânica que aumenta de forma simultânea à elevação da temperatura do planeta, o que pode afetar perigosamente a capacidade de sobrevivência de espécies, como corais, ervas marinhas, algas e peixes. Mudanças na salinidade, associadas a alterações de temperatura e pressão dos oceanos, também afetam a maneira como as ondas sonoras viajam no mar, com implicações para muitas espécies que dependem dos sons até mesmo para se localizar.
O oceanógrafo brasileiro Mauro Maida, professor na Universidade Federal de Pernambuco e um dos maiores conservacionistas marinhos, destaca que a proteção dos oceanos passa por soluções que precisam andar de mãos dadas, como a extensão de marcos legais existentes sobre Áreas Marinhas Protegidas (AMPs), melhoria na gestão pesqueira, aprofundamento da base de conhecimento sobre gestão marinha e governança regional, e principalmente fortalecimento da fiscalização das AMPs, que segundo ele, não é efetiva no país.
“Não adianta criar uma área protegida no papel se não há cuidado efetivo. Se o poder publico não tiver a obrigação de cuidar do patrimônio que ele tem obrigação de cuidar, o que será da área? Se numa área de proteção, o governo público não consegue fazer seu papel, e fora da unidade de proteção, o que vai acontecer?”, questiona o especialista, que defende maior interface entre ciência e política, a fim de orientar a tomada de decisões públicas e conscientizar a sociedade sobre a situação dos oceanos.
Fonte: Um Só Planeta