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PROIBIÇÃO ILEGAL

Gatos ingressam como autores de ação na Justiça após condomínio impedir que eles sejam alimentados

Na ação, é solicitado que a administração do condomínio permita que os gatos sejam alimentados e adote medidas como o custeio da ração desses animais e a realização de campanhas educativas que visem à conscientização dos condôminos acerca dos direitos animais

6 de agosto de 2021
Mariana Dandara | Redação ANDA
13 min. de leitura
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Potes de água e ração estão sendo retirados quando colocados por moradores (Foto: Divulgação)

Vinte e dois gatos comunitários se tornaram autores de uma ação judicial após a administração do condomínio residencial onde os animais moram há décadas, em João Pessoa, na Paraíba, impedir que moradores forneçam água e ração para os gatos. Desde que a perseguição aos animais se iniciou, casos de morte já foram registrados.

Mãe de Todos, Mostarda, Pretinha, Escaminha, Bubuda, Guerreiro, Wesley, Pérola, Medroso, Juliete, Assustado, Preta, Atleta, Aparecido, Rainha, Esposo, Doida, Branca, Oncinha, Maria-flor, Matuta e Sol são os nomes dos gatos que ingressaram com a ação, na noite de quarta-feira (4), no Tribunal de Justiça da Paraíba, pleiteando indenização por danos morais individuais e coletivos e o direito à alimentação e dessedentação (ato de por fim à sede) dentro do condomínio.

Os animais são assistidos em juízo pelo Instituto Protecionista SOS Animais e Plantas e pelos advogados Thaísa Mara dos Anjos Lima e Francisco José Garcia Figueiredo, professor de Direito e coordenador do Núcleo de Justiça Animal (NEJA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

“A matéria é polêmica, seja pelo fato de ter como autores animais, seres conscientes e sencientes, conforme comprovado cientificamente pela Declaração Sobre a Consciências em Animais Humanos e Não Humanos (Cambridge, 2012), seja pela obrigação atribuída pelo Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba (Lei n.° 11.140/18 – incisos I e II do § 3° do art. 7°) a todos os condomínios de assumirem a responsabilidade pela vida e saúde dos animais que estão nos prédios sob sua governança”, pontuou Figueiredo.

Na ação judicial, são expostos pressupostos jurídicos que fundamentam a capacidade dos animais de ser parte em processos movidos na Justiça. Dentre eles, o fato de que os animais são sujeitos de direitos fundamentais. “No que tange ao possível questionamento de os animais serem sujeito de direitos, vale destacar que uma atenta e contemporânea leitura constitucional já é suficiente para afirmar que os animais não são coisas, nem bens. No momento em que a Carta Magna de 1988 proíbe qualquer crueldade contra animais (parte final do inciso VII do § 1° do art. 225), destaca de forma implícita que esses seres possuem senciência, fato que gera um valor, qual seja, a dignidade animal. E como possuem dignidade própria, são sujeitos de direitos fundamentais”, explicam os advogados no texto da ação.

Impedir que animais sejam alimentados configura crime de maus-tratos (Foto: Divulgação)

“Como se não bastasse – e a Constituição deveria bastar –, o direito positivo brasileiro já tratou de assentar que os animais são, efetivamente, sujeitos de direito. Indo além, de acordo com a doutrina e legislação, em especial, o Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba, já se pode falar em direitos fundamentais de 4a dimensão para animais não humanos (…) Vale ressaltar que o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba reconhece, expressamente, o direito fundamental animal de ter as suas existências física e psíquica respeitadas (art. 5°, I). Alicerça o direito positivo e a interpretação das normas jurídicas nacionais, uma expressiva gama de livros e de artigos doutrinários afirmando que animais são sujeitos de direitos”, completam.

Ao prosseguir, os advogados informam que “todo sujeito de direito é dotado da capacidade de ser parte, pois possui personalidade judiciária (a qual não se confunde com personalidade jurídica), haja vista que a ordem jurídica jamais iria atribuir determinado direito a um ser vivo (direito de não ser tratado com crueldade, ou seja, direito a um tratamento digno) se ele próprio não fosse o sujeito daquele direito ora outorgado e, ainda, não pudesse pleitear em juízo – como parte – a sua restauração quando violado ou, na impossibilidade, a indenização respectiva”.

“Assim é que, sendo os animais sujeitos de direitos, como efetivamente o são, possuem o direito de ir a juízo para defendê-los, ainda que mediante representação ou assistência. Isto é: a partir do momento que os animais são sujeitos de direito, pelo princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (inciso XXXV do art. 5°), eles têm a capacidade de serem partes, podendo pleitear algo relacionado aos seus direitos perante o Estado-juiz”, acrescentam.

Além de serem alimentados por moradores, os gatos também recebem cuidados de saúde (Foto: Divulgação)

Ao relatar os fatos ocorridos no residencial, os defensores jurídicos dos gatos vítimas de maus-tratos ressaltam que durante décadas a presença desses animais foi tolerada e que as anteriores gestões condominiais nunca questionaram ou se opuseram à alimentação dos gatos. “Há pelo menos 34 anos não havia qualquer reclamação em relação à convivência com os gatos que eram alimentados em locais mais isolados”, informam os advogados, que relatam ainda que a perseguição aos animais se iniciou após a insurgência de uma única moradora que chegou recentemente ao condomínio e que “demonstra não tolerar a presença dos animais”.

Desde que passaram a habitar o condomínio, os gatos foram cuidados por alguns moradores que se comoveram com o sofrimento desses animais. Esses cuidadores não só disponibilizam água e ração aos animais, como são responsáveis por vermifugá-los, oferecer vitaminas e garantir cuidados veterinários. Alguns animais, inclusive, foram castrados e disponibilizados para adoção, o que é um objetivo dos moradores a ser alcançado também em relação aos demais gatos.

No entanto, desde que a perseguição aos animais se iniciou, os cuidados foram dificultados. “Com a alimentação servida pelas cuidadoras retirada pela administração, os animais vêm se alimentando de ração colocada no chão e bebendo água somente até que os trabalhadores condominiais, cumprindo ordens, ou mesmo o próprio síndico, realize o recolhimento. A fiscalização é incansável, o que demonstra a tamanha insensibilidade e desprezo para com vidas que não são da espécie humana”, reforçam os advogados no texto da ação.

A administração do condomínio também avisou os moradores sobre a proibição de alimentar os gatos. Ciente de que o ato de impedir que um animal seja alimentado configura crime de maus-tratos, uma moradora registrou boletins de ocorrência e recorreu ao Núcleo de Justiça Animal. Após o caso ser relatado ao NEJA, o coordenador da instituição, professor Francisco José Garcia Figueiredo, encaminhou ao condomínio um ofício com orientações e esclarecimentos sobre os direitos animais, no qual foram enumeradas leis que os protegem, como o Código de Direito e Bem-Estar Animal da Paraíba – Lei n.° 11.140/18 –, “que traz em seu bojo, além de direitos fundamentais (art. 5°) para os animais paraibanos, determinações sobre a responsabilidade da pessoa jurídica pelas vidas animais que adentraram voluntariamente nos prédios que estão sob a sua governança (§ 3° de seu art. 7°), como é o caso em apreço”.

Moradores que cuidam dos gatos encontram obstáculos para alimentá-los (Foto: Divulgação)

A proibição arbitrariamente imposta pela administração condominial, no entanto, manteve-se após o envio do ofício e, por essa razão, uma reunião foi realizada para tratar do assunto com a presença do síndico, do advogado do condomínio, do representante do Conselho Fiscal e do coordenador e de um membro do NEJA. De acordo com os advogados Thaísa Mara dos Anjos Lima e Francisco José Garcia Figueiredo, as “necessidades dos animais e seus correlatos direitos” foram debatidos na reunião. “Na ocasião, enalteceu-se que a conduta de não fornecer alimentos e água, bem assim de despejar os animais revela-se como verdadeiro crime ambiental”, relembraram os defensores jurídicos.

No entanto, apesar dos esforços para resolver a situação sem ter que recorrer à Justiça, fez-se necessário acionar o Poder Judiciário através da ação de autoria dos 22 gatos, que continuaram a ser perseguidos, o que, inclusive, causou mortes de animais. “Atualmente, os animais vêm frequentando o lixo à noite, árvores foram derrubadas, filhotes foram mortos no condomínio, animais sencientes e conscientes de toda a sua vida foram e vêm sendo privados do mínimo às suas existências dignas. Enfim, o condomínio, por meio de seu representante legal, vem infligindo dor a todos os membros da colônia, além de praticar crimes contra o meio ambiente (caput do art. 32 e seu § 1°-A da Lei n.° 9.605/98) e cometer sérias infrações administrativas tipificadas (i) no Código de Direito E Bem-Estar Animal da Paraíba (art. 3°; incisos II e III do art. 5°; incisos I e II do § 3° do art. 7°; inciso XII do art. 8°; art. 22 e seus desdobramentos; art. 102, todos da Lei n.° 11.140/18), (ii) na LEI MUNICIPAL n.° 8.616/98 (inciso XI do art. 3°) e, como decorrência das imposições contidas nesse mesmo inciso XI de citado instrumento municipal, pode-se asseverar que as infrações administrativas advêm também (iii) da transgressão aos comandos insertos nos incisos I e V do art. 3° do Decreto Federal n.° 24.645/34”, reforçaram os advogados, que lembram ainda que a “retirada arbitrária e constante dos alimentos” intensifica o risco dos gatos desenvolverem problemas de saúde, como inanição, desidratação, doenças, ferimentos e morte, “o que não se pode permitir”, já que privar animais de comida, água e cuidados “configura maus-tratos” e, sendo assim, os “pratos e a caixa de areia estão sendo retirados indevida e criminosamente”.

A perseguição aos gatos se iniciou após a chegada de uma nova moradora ao condomínio (Foto: Divulgação)

Para por fim à perseguição aos animais, os advogados solicitaram que seja concedida tutela de urgência, em caráter liminar, para determinar que o condomínio permita que os gatos fiquem nas áreas comuns da propriedade e não proíba que sejam colocados potes com água e ração, além da caixa de areia, em local de fácil acesso para os animais, abstendo-se de modificar esses espaços.

Outros pedidos também foram elencados na ação judicial, sendo eles: que a administração condominial se abstenha de dar ordens aos empregados do condomínio ou a quaisquer outros prepostos (terceirizados ou contratados a qualquer título), no intuito de retirar os utensílios (potinhos de plástico) para comida e água (inclusive, a caixa plástica que abriga os alimentos do sol e da chuva) e a caixa de areia das disposições originárias, isto é, dos locais onde os animais estão habituados há muitos anos a se servirem de ração e água e a fazerem suas necessidades fisiológicas; que se abstenha de aplicar qualquer multa ou advertência aos moradores em decorrência da permanência dos gatos no condomínio e de sua prática de alimentá-los e cuidá-los, uma vez que essas pessoas cumprem um papel imposto pela Constituição e por lei (garantir a integridade física e psíquica dos animais e, assim, a sua dignidade) que seria obrigação do próprio condomínio; que se abstenha de adotar quaisquer medidas visando à retirada dos gatos do Condomínio, haja vista sua obrigação constitucional (parte final do inciso VII do § 1° do art.
225), legal (Lei Estadual n.° 11.140/18; Lei Municipal n.° 8.616/98, especialmente o inciso XI de seu art. 3°, que conceitua maus-tratos) e resolucional (Resolução do CFVM n.° 1.236/18) de garantir a dignidade desses seres, isto é, as suas integridades física e psíquica e o consequente bem-estar.

Consta ainda no processo a solicitação para que o condomínio providencie a prática das seguintes condutas: a retirada imediata de comunicados nos murais do Condomínio, bem assim de quaisquer circulares ou outros documentos veiculados entre os condôminos e/ou em suas redes sociais com conteúdo proibitivo quanto à alimentação e cuidados com a colônia de gatos comunitários habitantes da localidade; que se o comunicado tiver sido enviado por e-mail, que seja remetida nova mensagem aos mesmos destinatários, revogando a notícia anterior e esclarecendo que não está proibida a colocação de alimentos e cuidados com os animais habitantes do condomínio, haja vista que tal vedação revela infração administrativa e crime ambiental; que informe, por meio de circular afixada nos murais do Condomínio e, também, por intermédio do grupo de WhatsApp, a todos os condôminos quanto à concessão do pedido liminar acompanhado da cópia integral da decisão, tão logo seja dela intimado, caso haja esse deferimento (ainda que parcial) e seja esse o entendimento do juiz.

Os gatos passaram a buscar comida no lixo após a proibição, como mostra a imagem (Foto: Divulgação)

Os advogados pedem ainda que o juiz responsável pelo caso estabeleça multa diária de mil reais por animal comunitário existente no condomínio em caso de descumprimento de quaisquer das medidas requeridas, que seja reconhecida “a capacidade de ser parte dos(as) autores(as) não-humanos(as), devidamente representados(as) em juízo pelo Instituto Protecionista SOS Animais e Plantas” e que os animais sejam reconhecidos como comunitários, com direito de permanecerem no local onde vivem há anos e de serem cuidados pelos moradores.

Além disso, Thaísa Mara e Francisco Garcia solicitam ainda que “as cláusulas das normas condominiais genéricas, abusivas e inconstitucionais, tal qual a constante do art. 136 de seu Regimento, que proíbe a permanência de animais no condomínio, sem que antes se obtenha a autorização expressa e individual da administração, bem como a possibilidade de permanência apenas de animais de pequeno porte, sejam sentenciadas como nulas, e que o condomínio, caso aplique alguma multa com base nesses dispositivos, seja obrigado a ressarcir os moradores com juros e correção monetária computados desde o dia da cobrança indevida”, em prazo a ser determinado pelo juiz.

Os advogados também pedem que a administração do condomínio seja condenada a pagar, a título de danos morais, R$ 30 mil para os “próprios autores agredidos, objetivando-se custear alimentação, esterilização, bem como outras despesas veterinárias, com prestação de contas em juízo, depositando-se as cifras na conta do Instituto Protecionista SOS Animais e Plantas” e R$ 20 mil em danos morais coletivos, a serem destinados à entidade para custeio de ações de “resgate, alimentação, medicação, consultas e castração de animais em situação de rua e, também, animais que estejam sob a guarda de protetoras(es) de menor potencial econômico ou que tenham sido resgatados de situação de
maus-tratos”.

Gatos sofrem maus-tratos por parte de condomínio (Foto: Divulgação)

É solicitado ainda que o condomínio que seja obrigado a providenciar a captura dos gatos, inclusive os semiferais, por meio de gatoeiras ou outra modalidade adequada, para castrá-los, e a arcar com os custos da ração dos animais e com assistência veterinária sempre que necessário, independentemente dos moradores também cuidarem dos gatos – e que isso seja feito “sempre em alinhamento com esses(as) cuidadores(as) que conhecem o dia a dia de todos(as) os(as) autores(as)”.

Por conta do histórico da administração condominial na lida com animais, é pedido ainda que o condomínio realize campanhas educativas quadrimestrais “pelos meios de comunicação adequados (redes sociais, site do condomínio, afixação de cartazes em seus murais, etc.), que propiciem a assimilação pelos(as) condôminos(as) de noções de ética sobre a posse responsável de animais domésticos (cães e gatos), objetivando sensibilizá-los(as) em relação à
consciência animal, à correlata senciência, aos positivados Direitos Fundamentais (especialmente, incisos II, III e V do art. 5° da Lei n.° 11.140/18) e aos cuidados que se deve ter para com esses seres, observadas, ainda, as determinações contidas na Resolução n.° 1.236/18 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), que ‘Define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados […]’, e no próprio Código paraibano ao conceituar o que vem a ser maus-tratos e crueldade, bem assim ao estipular obrigações de fazer e de não fazer para os humanos (coletividade) em relação aos animais”.

Vinte e dois gatos vivem no condomínio há décadas (Foto: Divulgação)

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