O encontro, há poucos dias, de 35 gatos mortos ou se debatendo em dolorosa agonia no Morro São Bento, em Ribeirão Preto, numa reserva florestal urbana, está sendo apurado pela Delegacia local de Proteção aos Animais. Em março, outros dez gatos foram encontrados mortos num condomínio fechado da cidade. Em todos esses casos, indícios fortes de envenenamento. Casos como esses se repetem em diferentes lugares do Brasil. Em 2005, 35 gatos foram achados mortos num parque público de Porto Alegre. Em 2008, vários foram mortos na zona sul do município de São Paulo. Em 2009, 20 desses animais pereceram em Botucatu. Em 2010, 30 foram mortos num parque público de Fortaleza e mais 4 no início de 2011. São os casos que ou geraram clamor público ou motivaram a intervenção da polícia.
Embora os gatos sejam as vítimas preferenciais dessa violência, também os cães têm sido por ela alcançados. Em Sales Oliveira (SP), em 2010, entre cães e gatos, 40 animais foram mortos. Penápolis (SP) é um município que faz a contagem oficial de cães e gatos mortos recolhidos pela prefeitura. Nos primeiros cinco meses de 2008, foram recolhidos 759 felinos, 11,6% mais que no mesmo período do ano anterior, enquanto o número de cães caía 30%, embora o número absoluto de cães fosse duas vezes maior que o de gatos. É possível que nem todos tenham sido envenenados, embora a inquietação da população e a mobilização da polícia sugiram que sim.
Essa violência não é nova nem aqui nem em outras partes. Foi, aliás, estudada pelo historiador americano Roberto Darnton num dos capítulos de seu livro sobre O Grande Massacre de Gatos, um caso ocorrido em Paris, cerca de 1740. Submetidos a tratamento e condições de vida degradantes, os trabalhadores de uma manufatura resolveram vingar-se da família do patrão matando os gatos da vizinhança a pauladas, enforcamento e afogamento, a começar da gata da mulher do dono. Compreende-se a fúria, pois os animais tinham passadio e tratamento muitíssimo melhores do que os trabalhadores. Um episódio da luta de classes concretizada na mediação dos animais de estimação que, na vendeta, simbolizaram os patrões.
Em nosso caso, há fatores dessa mesma ordem nos recorrentes casos de sacrifício de animais tanto domésticos quanto domesticados. É o que provavelmente explica a morte de animais em grande número nos zoológicos de São Paulo, de Goiânia, de Brasília, de Uberlândia, nos últimos anos. Mesmo que não se tenha identificado satisfatoriamente os autores dos extermínios, não se pode deixar de levar em conta que esses animais estão cercados de ressentimentos, pois no geral têm melhor alimentação, melhor moradia e melhor atendimento médico que a maioria dos trabalhadores dessas instituições. É difícil explicar para pessoas em situação adversa que um animal de zoológico tenha melhor vida do que elas.
O mesmo vale para cães e gatos, hoje cercados de um poderoso conjunto de serviços, do supermercado especializado aos veterinários, hospitais, farmácias, hotéis e estabelecimentos de banho e tosa, confortos que uma criança pobre ou moradora de rua não pode ter. Ou a empregada doméstica, no confronto com os animais de estimação de seus patrões. Os animais domésticos, não raro, são hoje personagens de afirmação de status, de identidade e das desigualdades sociais. Não é incomum que esses animais sejam tratados como filhos, os donos se dirigindo a eles como “a mamãe” ou “o papai”. Já encontrei uma moradora de rua que se privava de comida para que não faltasse o leite para seu gato, na verdade seu único amigo e sua única companhia. Não é incomum que moradores de rua tenham no cão o companheiro e o afeto que os humanos lhes negam. Portanto, não só ricos se apegam a esses animais, mas também os pobres, com mais intensidade até.
Animais especialmente treinados têm sido usados na recuperação afetiva e na regeneração da autoestima de crianças órfãs ou abandonadas e também de pessoas idosas em asilos e casas de repouso. O que muitas vezes um psicólogo ou um médico não consegue, um cão ou um gato consegue. A estrutura social contemporânea já incorporou gatos e cães no processo interativo dos humanos, animais que se tornaram mediadores efetivos e não só simbólicos de nossos relacionamentos. Eles ocupam a solidão residual em que estamos todos mergulhados, a intensidade dos relacionamentos que havia na sociedade tradicional drenada pela coisificação das pessoas, a sociabilidade empobrecida pela nossa conversão em instrumentos de algo que não somos nós mesmos.
O massacre de gatos e cães não é grave apenas porque se trata de manifesta crueldade, o que já indica personalidades perturbadas e doentes, de pessoas que na sua anômala conduta são também um risco para seres humanos. É grave, ainda e sobretudo, porque indica o primado do individualismo na conduta que suprime seres que fazem parte da trama de relacionamentos que nos humanizam.
Fonte: Estadao