O cãozinho Tomé, da raça galgo inglês, foi encontrado por protetores abandonado e desnutrido na Vila Nova Famalicão, no distrito de Braga, norte de Portugal. O animal estava com um microchip subcutâneo e através dele os ativistas conseguiram identificar a origem do cachorro. João Fernandes, empresário que auxilia ONGs em defesa dos direitos animais na região, não se surpreendeu quando descobriu que Tomé era mais uma vítima das corridas de cachorro.
O tutor do animal então foi notificado, e como João cuidaria do cãozinho, solicitou a transferência da guarda do animal. Foram meses em pé de guerra. “Ele queria o cão para o matar”, diz Fernandes, com convicção. “Eu me vi obrigado a dizer que formalizaria uma denúncia de abandono contra ele, para que me fosse passada a guarda de Tomé”, lembra o protetor.
O empresário oferece um espaço em sua casa par abrigar animais resgatados de maus-tratos e abandono. “Quando o Tomé chegou aqui, ele chorava como uma criança na hora de dormir, eu acho que ele tinha pesadelos”, diz. Foram longos meses, até que o cãozinho se sentisse acolhido de verdade. “Ele ficava encolhido em um canto, fugia das pessoas. Demorou quase um ano até que ele se tranquilizasse e se tornasse esse cão dócil que ele é hoje”, conta João. “É importante você dar espaço e tempo para o animal se adaptar. A gente nunca sabe pelo o que eles passaram”, orienta.
O Tomé carrega profundas cicatrizes do processo de treinamento para tornar os cachorros rápidos para as competições. “Tomé tem a pele das patas traseiras raspadas. É um sinal de que foi submetido a treinos excessivos dentro de poços eletrificados. Pelo jeito ele demorou para aprender a sair do buraco, por isso tem essas marcas”, lamenta o tutor.
O treino da nora, como é conhecida a exploração de cães dentro de poços que liberam choques elétricos, é muito usada para fazer os animais ganharem mais velocidade nas corridas. Muito galgueiros (nome dos exploradores de cães), se especializam nesse tipo de tortura nos bastidores desses eventos. Além de fazerem os cachorros passarem horas nessa situação apavorante, coleiras que emitem choques também são colocadas nos animais para serem ativadas caso algum cachorro fique para trás da matilha.
Um dia nas corridas
João Moura, de 56 anos, é tido como o mais proeminente criador de cachorros galgos em Portugal. Ele declara que alimenta essa ‘paixão’ por esses cães desde março de 2010, quando venceu o LXXII Campeonato Nacional da Espanha de Galgos, com a cadela Alheira. Para o homem, que foi toureiro por muitos anos, a competição em Monforte foi compensadora naquele dia. Na final mais esperada, Moura levou os 2.º e 3.º lugares, com os cães Bingo e Give me Five, conquistando uma vaga na final nacional da competição. A disputa é tão séria para João Moura, que ele não troca uma palavra com seus sobrinhos, Moura Caetano e João Augusto, que também participam dos campeonatos de exploração de cachorros.
Nesse dia, a família Moura foi surpreendida pelo cão Catunda, que atingiu 72 km/hora na corrida de 250 metros em pista elevada. O animal tem dois anos e seu responsável é Horácio Vargues, um empresário de Albufeira, cidade na região de Algarve, onde administra vários bares e discotecas e atua na Associação dos Galgueiros do Sul.
Horácio se defende das acusações das entidades em defesa dos direitos animais, que o acusam de exploração e crueldade com os animais, alegando que desde 2017, todas as competições são supervisionadas e que os cachorros passam por exames antidoping para evitar o uso de anabolizantes e drogas, como cocaína, que fazem mal aos cachorros.
Ele também diz que as caças que contra lebres nas competições vêm diminuindo. “Há cada vez menos lebres durante as caçadas, temos de as proteger”, diz ele.
Campeonatos milionários
Gonçalo Lagem, presidente da Câmara do município de Monforte, é a favor das competições. “Cada raça tem diferentes funcionalidades. Os galgos foram feitos para correr. Os ataques de que os galgueiros são alvo estão descontextualizados, ninguém gosta mais de animais do que quem os ‘usa’. As pessoas têm que ter bom senso”, tenta justificar Lagem. Ele considera que as corridas fazem parte da tradição e cultura da região. “Elas (corridas) trazem dinheiro, enchem os restaurantes e os hotéis da nossa cidade”, completa.
A mesma argumentação é usada pelo presidente da Câmara alentejana de Cuba, João Português, que em setembro do ano passado inaugurou uma pista municipal para corridas de greyhounds (nome popular das corridas de cachorro), com o objetivo de tornar a vila na “capital portuguesa do galgo”. Porém, a maior parte dos 600 criadores de cachorros galgos que existem no país, vivem na região norte de Portugal. É muito comum que essas danosas explorações de cães sejam realizadas até três vezes em um único final de semana.
Um cachorro galgo importado da Irlanda costuma valer cerca de cinco mil euros. Considerados animais com genes de campeão, alguns cães valem até 30 mil euros. Os galgos são considerados de alto valor monetário para os criadores, e muitos deles têm dezenas de cães prontos para competir.
No Reino Unido e na Irlanda, a indústria de abuso de greyhounds vale €1,9 milhões por ano. Em 2014, por exemplo, as casas de apostas, nesses dois países, lucraram cerca de €300 milhões com as corridas de galgos.
Esse tipo de exploração levanta centenas de milhares de euros nos países europeus. Todavia, da mesma forma que o giro de capital é frenético, os escândalos envolvendo os animais também são. Em julho de 2006, o Sunday Times denunciou que longo de 15 anos, mais de dez mil cães saudáveis foram mortos sem justificativa pelos galgueiros. Os animais considerados indesejáveis foram enterrados em um jardim na cidade de Seaham, na Inglaterra. Com uma câmera escondida, repórteres da BBC mostraram no programa Panorama, em 2014, a relação entre a dopagem de galgos e as apostas.
No começo de 2021, o campeonato de galgos na Espanha quase foi cancelado depois que um teste de DNA provou que dois dos cães que estavam competindo, eram frutos de um roubo de esperma de um galgo recordista.
Um dos maiores impactos das corridas que exploram os cães galgos é o abandono. “Na Inglaterra, cerca de 150 mil cachorros dessa raça são abandonados ou mortos todos os anos”, diz Harry Eckman, dirigente da Change For Animals Foundation, que atua em nível internacional. Outra grande preocupação é a falta de fiscalização dos animais que são levados da Irlanda e Inglaterra para Portugal e a Espanha. “Há a suspeita de que a maioria destes cães são transportados ilegalmente, sem a documentação exigida”, explica o ativista.
O embarque de 24 cães galgos para Macau, região autônoma da China continental, foi barrado no Aeroporto Internacional de Manchester, após as equipes do terminal contatarem que a documentação dos animais era ilegítima. Harry conta que foi lançada uma campanha pedindo que as companhias aéreas não realizem o transporte desses cachorros. “A Change Animal lançou um abaixo-assinado pedindo à companhia aérea Luftansa, que deixe de exportar galgos para Macau” diz o ativista, que explica que a medida foi tomada depois da divulgação de dados alarmantes: cerca de 30 cães morrem todas as semanas nas pistas de competição na região. O abaixo-assinado reuniu 65 mil assinaturas.
Crime ou entretenimento?
No Reino Unido e na Irlanda, os galgos são explorados até os cinco anos de idade. Em Portugal, com um pouco mais de dois anos, os animais já são considerados desgastados para a performance. “A partir dos três meses de idade, esses cães começam a ser treinados, arduamente, todos os dias, e aos cinco meses passam para as noras circulares”, diz Harry. “Em pouco tempo, os animais desenvolvem fraturas ou fissuras ósseas, nas patas ou no fémur, ou lesões musculares, e por norma são mortos ou abandonados”, lamenta.
Já o doping, que é largamente usado nas competições, provoca nos animais “doenças renais, hepáticas, cardíacas, dermatológicas, odontológicas e, em 98% dos casos, patologias do foro psicológico”, aponta o protetor. Infelizmente, adotar esses animais é uma missão que nem todos estão dispostos a cumprir. “Esses cães precisam de adotantes com disponibilidade de tempo, espaço e condições financeiras para poderem acompanhar o longo processo de adaptação e reabilitação que, com frequência, ultrapassa o primeiro ano no novo lar”, detalha.
Pipa é uma cadela que foi encontrada abandonada na região do Alentejo, em Portugal. Quando ela chegou à casa da família Pereira, dona de uma vasta propriedade em Camarate, na capital Lisboa, com uma fratura na pata traseira esquerda, Judite Pereira, 49 anos, e a filha, Susana, 27, tiveram muito trabalho para adaptar a cachorrinha. Hoje, só de olhar, elas sabem quando Pipa está precisando de um analgésico para aliviar as dores nas patas. Na casa dos Pereira vivem mais 32 cães, de diversas raças, e 15 gatos que fazem companhia para a galga.
Cachorros explorados para competições de velocidade, desenvolvem vários distúrbios comportamentais, as tutoras dizem que no começo tinham que ficar em alerta para Pipa não atacar e morder os outros cachorros. “Com o tempo, a cadelinha foi ficando mansa e encontrou amizade no nosso gatinho Luz. Eles se adoram, até dormem juntos, aconchegados um ao outro”, conta a tutora dos animais, entusiasmada.
André Silva, deputado do PAN (Pessoas-Animais-Natureza), explica por que as autoridades de Portugal permitem que esse tipo de exploração continue sendo realizada. “A nossa legislação é absolutamente omissa quanto a esta matéria. A lei que criminaliza os maus-tratos a animais não compreende as corridas de galgos, classificando-as como entretenimento. A exploração desses cães para o divertimento humano, usa métodos comprovados de crueldade e violência, e representa um problema muito sério do nosso país”, pontua o deputado. “É crucial que a lei se estenda para além dos animais domésticos”, diz ele.
Para André, as leis precisam se atualizar e compreender que essas atividades que abusam dos cachorros causam um impacto negativo para a sociedade. “O que o PAN quer é um quadro legislativo que tenha capacidade de regular e atuar sobre estas situações, mas muitas vezes o assunto é envolto em um secretismo perversor das autoridades”, reclama o parlamentar.
A tutora Maria Ramalho, de 53 anos, resgatou duas cadelas Xira e Nôa, dos canis de exploração de galgos. Maria se lembra bem do dia em que recebeu em seu email uma foto de uma cachorra galga em um estado deplorável de abandono, no canil de Vila Franca. Ela não pensou duas vezes e foi ao encontro do animal.
“Ela estava tão triste e magra, com aquele cheiro forte, que me dava até náusea”, lembra Ramalho. Ela recorda que deu um banho na cadelinha e lhe ofereceu comida. “Parecia que ela chorava enquanto comia”, diz. Inicialmente, a tutora pensava em cuidar do animal e disponibilizá-lo para adoção, porém, depois da primeira noite de Xira em sua casa, ela sentiu que aquela cadela era para si. “Ela era completamente apavorada, só ao fim de quase um ano depois da adoção que ela começou a ficar mais tranquila”, lembra Maria.
Pouco tempo depois, outra cadela galga cruzou o caminho da mulher. “Era uma cachorrinha que vagava por Montemor-o-Novo, em Alentejo, e estava grávida. Um canil local resgatou o animal, e mais uma vez Maria se sentiu impelida a ir ao encontro da cadela. Ela batizou a galga de Nôa. Ramalho realiza a guarda-compartilhada das cachorras com seu ex-marido.
O final feliz de Xira e Nôa, infelizmente é uma exceção. O problema de cães galgos abandonados no país portenho é muito mais comum do que se imagina. Há cerca de 25 anos atrás, um criador de galgos atirava nos animais durante as provas, quando eles não lhe agradavam, o episódio se repetia frequentemente, e poucos tinham coragem de dizer alguma coisa. Cenas assim ainda podem ser vistas em competições mais reservadas, e a exploração de cães dessa raça parece longe do fim.
Laço corrompido
As corridas de cães galgos surgiram no século XVIII no Reino Unido, e o cenário não podia ser mais problemático. “Por ano, eram abusados 20 mil cães nas corridas, sendo que cerca de quatro mil eram mortos a cada ciclo de competição” diz Harry Eckman, da ONG Change For Animals. Eckman esclarece que até hoje existem centenas de obstáculos legais para proibir a prática.
Algumas medidas foram tomadas em relação ao bem-estar dos animais durante a estadia nos canódromos, mas a verdadeira crueldade ainda se esconde nos canis onde os animais são criados, treinados e reproduzidos. Segundo Eckman, existem doações feitas pelos organizadores dos eventos para promover a saúde e segurança dos cachorros, “mas é como uma indústria corrupta, que não destina as verbas para onde precisa”, pontua o ativista.
Crueldade atualizada
Na Irlanda, os criadores de galgos implantaram esteiras rolantes para treinar os cachorros. Os animais são amarrados as máquinas e forçados a correrem em altas velocidades, correndo risco de graves lesões. A maldade virou tendência entre os criadores de galgos portugueses, que atualizaram seus meios de exploração dos animais, levando-os a extrema exaustão, ocorrendo muitas vezes ferimentos sérios nas patas dos cães, que são deixados para “deitar fora”, como dizem os galgueiros.