Ainda não se sabe com 100% de certeza o que causou a extinção dos grandes mamíferos das Américas – mamutes, mastodontes, preguiças-gigantes – milhares de anos atrás. Mas dois novos estudos inocentaram em parte os antigos índios da cultura conhecida como Clovis, jogando uma parcela da culpa para seus antecessores.
As pesquisas mostram que o processo de extinção dos grandes animais durou bem mais tempo do que se imaginava, com isso pondo por terra pelo menos duas hipóteses – a de que teria sido causada imediatamente pelo impacto de um meteoro ou por uma rápida matança pelo homem, a chamada hipótese Blitzkrieg (“guerra relâmpago”).
Os índios da cultura Clovis, de 13,5 mil anos atrás (em idade calibrada), possivelmente apenas deram o golpe de misericórdia nos grandes bichos, afirma um estudo publicado na revista Science; e bolsões de mamutes e cavalos sobreviveram no interior do Alasca por pelo menos 2.600 e 3.700 anos a mais do que se imaginava, respectivamente, segundo o outro, publicado na revista PNAS.
Alguma forma de mudança climática também pode ter apressado o fim dos grandes animais. A prova do crime foi achada em estrume fossilizado.
“Pela primeira vez nós temos uma ligação muito próxima entre esses grandes eventos ecológicos”, disse o líder da pesquisa da Science, John W. Williams, da Universidade de Wisconsin em Madison, EUA.
Responder a essa pergunta – o que trouxe a extinção? – tem criado tanta polêmica que desviou a atenção dos pesquisadores para uma segunda questão importante: como a extinção afetou o ecossistema?
Ilustração reconstitui paisagem ao redor do lado Appleman, nos EUA, durante a Era do Gelo, com mastodontes comendo freixos
O estudo “dá respostas a ambas as questões”, foi o comentário de outro pesquisador que trabalha com extinções da chamada megafauna, Christopher Johnson, da Universidade James Cook, na Austrália.
“Minha interpretação da evidência no novo artigo é que foram pessoas que causaram a extinção da megafauna, e que fizeram isso ao caçar demais”, disse Johnson à Folha.
“Seria ingenuidade achar que não houve papel humano nas extinções”, diz o pesquisador brasileiro Mauro Galetti Rodrigues, da Unesp de Rio Claro, que também publicou artigo na “Science” este ano sobre a extinção da megafauna.
“Na América do Sul a extinção não foi tão abrupta como se falava sobre a América do Norte. A hipótese Blitzkrieg nunca se aplicou aqui”, diz Galetti.
A equipe de Williams comparou pólen e carvão pré-históricos em sedimentos tirados do lago Appleman, Indiana, mas a grande estrela da pesquisa é um fungo encontrado no estrume de grandes mamíferos.
Os fungos do gênero Sporormiella são “coprófilos” – isto é, vivem em fezes –, pois precisam da digestão por herbívoros para completar o ciclo de vida.
A quantidade de esporos de Sporormiella representa, portanto, um ótimo indicador da quantidade de grandes herbívoros ao longo do tempo.
O estudo demonstrou que esses grandes animais começaram a declinar cerca de mil anos antes de aparecerem registros da cultura Clovis.
Essa tradição cultural norte-americana, que até a década passada era considerada a mais antiga das Américas, trouxe inovações tecnológicas como pontas de lança chanfradas e machados bifaciais. Isso permitiu que o povo – ou os povos – Clovis vivesse basicamente da caça de grandes mamíferos, como mamutes.
Muitos arqueólogos põe nesse grupo humano a culpa pela extinção, mas o declínio principal da megafauna, a julgar pelos esporos de fungo, teria ocorrido entre 14,8 mil e 13,7 mil anos atrás.
Paisagismo natural
“Nosso trabalho não resolve o debate sobre a causa, mas elimina algumas das hipóteses. Quanto ao clima, podemos eliminar a mudança de habitat, que parece ser uma consequência, e não uma causa, das extinções”, disse à Folha a principal autora do estudo, Jacquelyn L. Gill, orientanda de Williams.
“Depois do declínio dos esporos, nós observamos uma mudança na comunidade de vegetação e um aumento de incêndios na paisagem”, disse.
Tanto o fogo quanto a presença de grandes herbívoros afetam a paisagem vegetal. O “paisagismo” criado pelos animais é função da sua preferência por determinadas plantas.
Sem esses animais de mais de uma tonelada de peso, as plantas que eles comiam podem crescer e se multiplicar, produzindo uma floresta diferente daquela do passado, mas também daquela atual.
O território passou a ser colonizado por árvores como freixos, olmos e carpinos, que antes seriam devoradas.
A paisagem em torno do lago Appleman durante o auge da megafauna era semelhante à de uma savana, com grandes espaços abertos. Com a chegada dos seres humanos ao continente começou a caça aos animais que viviam nessa savana e ajudavam a moldar sua vegetação.
Mas, mesmo no ponto de entrada dos humanos nas Américas, o Alasca, o estudo da “PNAS” mostrou uma inesperada sobrevivência.
Em vez de procurar macrofósseis – isto é, ossos e dentes de animais –, a equipe liderada por Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, foi atrás de restos de seu material genético preservados no solo.
A técnica usada permite descobrir os fósseis moleculares, isto é, DNA preservado no solo onde o animal ou planta morreu sem deixar restos maiores.
“Nossos achados mostram que o mamute e o cavalo existiram lado a lado com os primeiros imigrantes na América com certeza por 3.500 anos e não foram, portanto, exterminados por eles”, afirma Willerslev.
“Quanto aos seres humanos, nosso registro sugere que no tempo em que adotaram o kit de ferramentas de Clovis, os animais já estavam em declínio. Há evidências crescentes de que os seres humanos já estavam de fato na paisagem antes de Clovis (…) Os seres humanos estavam na região dos Grandes Lagos 14,5 mil anos atrás, e embora possam ter desempenhado um papel nas extinções, foi antes de desenvolverem estas ferramentas especializadas”, diz Gill.
“Há uma boa chance de que as populações pré-Clovis e Clovis fossem na verdade a mesma, e que Clovis marca um desenvolvimento tecnológico, em vez da chegada de um grupo distinto”, acrescenta Johnson.
Fonte: Olhar Direto