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RESPOSTA

Folha de São Paulo promove visão especista e errada sobre testes em animais

A matéria retrata a verdade sobre esses experimentos? São eles necessários para o avanço do conhecimento sobre nós humanos? E quanto aos animais? Seu sofrimento é justificável científica e moralmente?

22 de agosto de 2021
Paula Brügger* | Redação ANDA
9 min. de leitura
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Foto: Divulgação

Para quem tem uma formação ampla em ciência, foi nauseante ler a matéria intitulada “Testes em animais permitem saber se as coisas são seguras”, publicada na Folha de São Paulo, na seção C6, “Folhinha”, em 21 de agosto de 2021. A matéria coloca a visão da pesquisadora Laís Berro, partilhada pela parcela da comunidade científica que defende os experimentos com animais, como se fosse uma verdade única e inquestionável. O texto, cujo subtítulo é “Cientista explica que bichinhos são importantes e recebem tratamento digno”, discorre sobre a suposta crucialidade dos experimentos em animais nas mais diversas áreas da vida humana, como alimentos, cosméticos, fármacos, e até brinquedos. O conteúdo – que é destinado a crianças e jovens, e tem um linguajar adaptado para cativar essas faixas etárias – merece uma resposta comprometida com fatos, e não com a visão apresentada acerca dessa prática anacrônica e abjeta.

O viés antropocêntrico e especista da matéria – ou seja, a visão de que os animais não humanos estão no planeta para servir à espécie Homo sapiens – já seria motivo suficiente para um debate. Isso inclui desde questões como as evidências científicas acerca da senciência/consciência animal, publicadas na Declaração de Cambridge sobre Consciência, de 2012, até questões de cunho ético e moral que dizem respeito ao fato de que reduzir seres sencientes ao estatuto de coisas, de ferramentas de laboratório, é algo incompatível com o tratamento respeitoso que a pesquisadora pretende afirmar.

Contudo, a fim de tornar a presente discussão mais objetiva, passo a discorrer sobre alguns fatos concretos acerca dos modelos animais, uma vez que a matéria propaga duas grandes inverdades sobre o tema: a confiabilidade dos resultados de testes realizados em animais, e o tratamento supostamente respeitoso que lhes é dispensado. Comecemos pela primeira afirmação, a de que “os testes permitem saber se as coisas são seguras”. Esse “carro-chefe” da matéria tem um nome técnico: predictabilidade. E os modelos animais são famosos pela sua baixíssima predictabilidade, ou seja, pelo seu potencial pífio de prever efeitos e respostas em seres humanos, a partir de dados obtidos em animais.

A Teoria da Evolução explica isso. Embora todas as formas de vida tenham uma origem comum e características comuns, o processo evolutivo resultou em milhões de plantas e animais muito distintos entre si. Somos formados pelas mesmas unidades de DNA, que são juntadas no mesmo processo. Mas a composição, ou seja, os arranjos genéticos são diferentes. Isso faz toda a diferença. É o que acontece também com as sete notas musicais, de Led Zeppelin a Johann Sebastian Bach! Essa miríade de arranjos e processos moldados por diferentes pressões evolutivas, resultaram na colossal biodiversidade que conhecemos. Os testes em animais falham exatamente porque existem diferenças entre as espécies na anatomia, na fisiologia, nos níveis celulares e sub-celulares, nos hábitos (p. ex. diurno x noturno), interações ambientais, entre muitas outras questões. Tais diferenças resultam na não-correspondência na absorção, distribuição, e metabolismo de substâncias. Ademais, as condições de laboratório são mais controladas do que na vida humana, e as doses administradas aos animais podem ser muito maiores do que as prescritas aos humanos em termos de peso corporal. As vias de inoculação de diferentes substâncias – se oral, anal, peritonial, vaginal, etc – exercem também uma grande influência sobre os resultados dos testes. Animais de laboratório são, ainda, em geral, menores do que nós e, com isso, têm um metabolismo mais intenso. Esse fato pode impedir que efeitos tóxicos apareçam, pois as toxinas são eliminadas mais rapidamente. Além disso, a ausência de algumas substâncias, como os analgésicos, o grau de complexidade dos ambientes de laboratório, sexo, idade, e linhagem dos animais, podem afetar enormemente os resultados de um experimento. Por esses motivos, os modelos animais falham em um critério central para uma teoria ser considerada como científica: a predictabilidade citada antes.

A matéria comenta que alguns dos sujeitos de testes da pesquisadora são roedores. Vejamos algumas diferenças entre nós e esses animais. Ratos, por exemplo, respiram obrigatoriamente pelo nariz (isso pode alterar a forma – como e quando – uma substância entra pela corrente sanguínea); sua placenta é bem mais porosa do que a dos humanos; devido a diferenças na distribuição da microflora intestinal, os ratos são muito mais propensos a metabolizar um composto administrado oralmente em um metabólito ativo ou tóxico; a secreção de ácido no interior do seu estômago é contínua, enquanto nos humanos ela ocorre apenas em resposta à presença de alimentos, ou outros estímulos. Os ratos são animais de hábito noturno, susceptíveis a doenças diferentes daquelas que acometem os humanos, têm diferentes requerimentos nutricionais, etc. Primatas, como os “macacos-resos”, são também sujeitos de pesquisa de Laís. Embora a semelhança genética seja muito maior entre nós e esses animais, em comparação com os roedores, é impressionante pensar que uma diferença num único aminoácido entre primatas humanos e não humanos impeça o HIV de se acoplar ao mesmo receptor celular em primatas não humanos, por exemplo.

O resultado concreto disso é que quase 95% dos medicamentos que entram em testes em humanos falham. De acordo com o National Institutes of Health (NIH), 80% a 90% dos projetos de pesquisa falham antes de serem testados em humanos e para cada medicamento aprovado, mais de outros mil são reprovados. Quase 50% de todas as drogas experimentais falham nos estudos de Fase III (em humanos). Conseqüentemente, a taxa de aprovação final entre os novos candidatos a medicamentos provenientes da pesquisa pré-clínica é de apenas cerca de 0,1%. Embora essa baixíssima taxa de sucesso possa variar, algumas doenças e áreas citadas na matéria – como o câncer e as malformações em bebês de mulheres grávidas – colecionam fracassos históricos exatamente por causa dos testes em animais. Vários cientistas afirmam que, se fôssemos ratos, a doença de Alzheimer, o câncer, a diabetes, e a maioria das doenças hereditárias seriam coisas do passado. E, no que tange às malformações embionárias, a talidomida é um exemplo clássico dos perigos da extrapolação de dados obtidos em animais.

Foto: Getty Images

Como pode então a pesquisadora afirmar que os testes com animais entregam resultados confiáveis? Têm mesmo os fármacos testados em animais “mais chances de fazer o bem do que o mal”, e serem mais céleres no que toca a resultados aplicáveis à espécie humana? As estatísticas acima respondem a essas perguntas com um retumbante NÃO. Laís afirma que “antes dos testes em animais existirem, a taxa de mortalidade era enorme e não existia uma quantidade suficiente de medicamentos para tratar as diversas doenças”. Entretanto, estudos epidemiológicos apontam que o aumento da longevidade humana no Ocidente, nos últimos 150 anos, se deve essencialmente aos progressos da higiene pública, alimentação, condições de alojamento, água potável, esgotos, etc. Isso reduz substancialmente o papel das “armas” que a medicina conseguiu desenvolver e aperfeiçoar. E muitas delas foram sem, ou apesar do uso de animais.

Por fim, é preciso fazer um reparo de monta à parte final do texto que trata das condições em que vivem os animais explorados em laboratórios. A matéria afirma que as pesquisas seguem normas rígidas para “minimizar ao máximo o sofrimento animal” (estranha assembléia de palavras, “minimizar ao máximo”!) Para tanto, procura ratificar seus argumentos pró-vivisseccionistas acrescentado que os experimentos têm que passar por comitês de ética. Todavia, tais comitês são técnicos, e não de “ética”, e são formados em sua maioria por vivisseccionistas que, usualmente, dão um aval sumário aos experimentos.

Além do viés especista presente em todo o texto, emerge também um especismo seletivo quando o texto trata dos macacos, dando a entender que os primatas seriam mais dignos de consideração moral do que outros animais, no quesito bem-estar. A matéria relata situações quase idílicas no que tange à forma de alojar esses animais, que, se verdadeiras, são antes exceções em vez da regra. A pesquisadora afirma que os macacos têm brinquedos, espelhos e, pasmem: assistem a filmes como “O Rei Leão”, e “Procurando Nemo”!. Nada foi dito porém, nesse sentido, sobre os roedores. A eles cabem provavelmente as masmorras. Entretanto, também fica claro um motivo nada nobre acerca da preocupação com os macacos: o custo elevado para criá-los.

Mas qual é a real situação dos alojamentos de animais explorados em laboratórios? As jaulas e gaiolas são, via de regra, exíguas, sem conforto térmico, fedorentas, e absolutamente pobres em termos ambientais. Nessas condições cruentas vivem os animais, solitários e emocionalmente deprimidos. Tudo se agrava quando são “desenhados” para apresentar defeitos genéticos nocivos de nascença, por exemplo, ou precisam se recuperar de danos físicos infligidos nos “testes”. Estes incluem: choques elétricos, queimaduras, fraturas, ingestão forçada de substâncias tóxicas, trepanações e remoção de calotas cranianas, e um sem-número de outras atrocidades. Às vezes são também espancados.

Foto: Draize

Após essa apologia à pseudociência da experimentação animal, e à ruína moral no que concerne aos animais nela subjugados, a lamentável peça jornalística diz que abandonar os experimentos com animais é impossível. Mas acena com substitutivos promissores numa área onde já há inúmeras proibições: a dos cosméticos.

Por último, a matéria cita a pesquisadora que afirma ser apaixonada por animais! As pesquisas são, para ela, apenas um mal necessário para a obtenção de conhecimento para a humanidade. A vivisseccionista, que deseja aumentar o potencial de gerar novos tratamentos com base nessa prática, afirma ainda que os cientistas (e dá a entender que são todos!) tratam os animais com dignidade e humanidade.

Diante de todas as inverdades veiculadas na matéria e de tudo o que foi discutido aqui, é gravíssima a presença, no final da matéria, de um suposto selo de qualidade, denominado “Todo mundo lê junto”. Abaixo do título segue: “Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança”. O que mais dizer? Doutrinar crianças e jovens com informações falsas é revoltante.

Bibliografia consultada:

GREEK, Ray & GREEK, Jean. Specious Science: How Genetics and Evolution Reveal Why Medical Research on Animals Harms Humans. London/New York: Continuum, 2003.
BRÜGGER, Paula. A abordagem interdisciplinar na argumentação antivivisseccionista. In: SIIEPE-SUL – Simpósio Internacional sobre interdisciplinaridade no Ensino, Pesquisa e Extensão Região Sul. Disponível em: <http://www.siiepe.ufsc.br/wp-content/uploads/2013/10/C-Brugger.pdf

Paula Brügger* Bióloga, Mestra em Educação e Ciência, Doutora em Sociedade e Meio Ambiente

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