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EXPLORAÇÃO E MORTE

Enguia europeia: como animal 'mais misterioso' do mundo pode acabar extinto

3 de dezembro de 2022
9 min. de leitura
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Enguia europeia no rio Cachón, na Espanha: construção de represas dificultou a viagem das enguias em água doce.| Foto: Miguel Clavero

Poucos animais despertam tanta fascinação quanto a enguia (Anguilla anguilla).

Este peixe com corpo de serpente, coberto por uma gosma escorregadia, é surpreendentemente ágil e quase impossível de segurar.

Ele passeia discretamente pelas profundezas escuras com sua fama de necrófaga.

A enguia foi extremamente explorada ao longo dos anos, ela já serviu para cobrar impostos na Inglaterra, alimentou pessoas e animais na Europa e no norte da África e sustentou uma das poucas atividades de pesca comercial em água doce nesta parte do mundo.

Mas afinal, de onde elas vêm? Esta pergunta é o mistério da enguia, que cativou naturalistas ao longo da história.

Aristóteles, Plínio, Aldrovandi e até Sigmund Freud quebraram a cabeça tentando explicar a simples existência de um animal que parecia não se reproduzir.

Cada um deles apresentou uma proposta, cada qual mais criativa que a anterior, incluindo até a geração espontânea.

O principal avanço para a solução do enigma veio do esforço e empenho do biólogo dinamarquês Johannes Schmidt. Ele viajou nos primeiros anos do século 20 para procurar a origem das enguias europeias.

Pouco antes, no final do século 19, o zoólogo italiano Giovanni Grassi havia descoberto que certos peixes marinhos pequenos e transparentes em forma de folha, conhecidos como Leptocephalus brevirostris, eram, na verdade, formas juvenis da enguia, que hoje chamamos de larvas leptocéfalas.

Ao aproximar-se do litoral europeu, as larvas transformam-se em enguias. Nesta forma, elas penetram nos rios e nos pântanos.

A descoberta de Grassi deixou claro que as enguias vêm do mar. Mas o mar é muito grande.

Primeiramente, imaginou-se que o Mediterrâneo seria o local de reprodução das enguias. Mas Schmidt capturou larvas leptocéfalas no Oceano Atlântico e observou que sua quantidade diminuía ao entrar no Mediterrâneo.

Ele também percebeu que o tamanho das larvas era variável e imaginou que a região de origem das enguias seria aquela onde se encontravam os leptocéfalos menores.

Schmidt dedicou-se então à imensa empreitada de pescar larvas leptocéfalas ao longo e ao largo do Atlântico Norte, registrando a posição e o tamanho de cada uma delas.

Ele sempre procurava as larvas menores e cada vez mais se aproximava de uma região a leste da Flórida, nos Estados Unidos.

Schmidt publicou seu trabalho em 1923 e, desde então, afirmamos que as enguias se reproduzem no mar dos Sargaços. Parece surpreendente, mas o trabalho de Schmidt nos ensina muito pouco sobre a região de reprodução da enguia e sobre a viagem dos peixes até lá.

Ninguém nunca capturou uma enguia adulta (com órgãos reprodutores) no mar, muito menos em volta do mar dos Sargaços. Também não foram encontrados ali seus ovos fecundados.

A grande viagem da enguia

A enguia europeia está no estágio mais crítico de ameaça de extinção | Getty Images

Com os avanços do desenvolvimento tecnológico, diversas equipes instalaram transmissores em enguias próximas a iniciar a viagem, esperando que eles indicassem sua região exata de reprodução.

Foi assim que aprendemos detalhes fascinantes sobre a viagem das enguias. Por exemplo, que elas não comem durante todo o trajeto marítimo, de milhares de quilômetros. Ou que, durante seu nado constante, elas mudam de profundidade entre o dia e noite, com diferenças de mais de mil metros.

Animais marcados na Irlanda e na Escandinávia seguiram a rota prevista em direção ao mar dos Sargaços.

O mesmo aconteceu com as enguias que saíram do sul da França, cruzando o estreito de Gibraltar. Mas os transmissores que marcavam todas essas rotas afastaram-se pouco do litoral da Europa.

Agora, quase cem anos depois da publicação do trabalho de Schmidt, uma equipe internacional deu outro passo histórico para a resolução do mistério das enguias.

Eles conseguiram, pela primeira vez, acompanhar a viagem da enguia até a sua suposta área de reprodução, que coincidiu com o proposto por Schmidt em 1923.

Para isso, foram marcadas enguias no arquipélago dos Açores, que é o território mais próximo do mar dos Sargaços de toda a região de distribuição da espécie.

Essas enguias economizam milhares de quilômetros de viagem em comparação com as enguias britânicas, italianas ou dinamarquesas. Por isso, seria mais provável conseguir acompanhá-las até o seu destino.

E assim foi. Das 26 enguias marcadas, cinco entraram no mar de Sargaços e uma delas chegou exatamente à região de reprodução indicada por Schmidt. Mas o enigma das enguias ainda não está resolvido.

Confirmamos que as enguias nadam até onde acreditávamos que elas iriam. Mas continuamos sem conhecer o lugar exato da sua reprodução, sua profundidade, sua separação do local onde se reproduz sua espécie irmã (a enguia americana, Anguilla rostrata), como elas fazem para reproduzir-se naquele local e o aspecto das enguias quando, depois de uma viagem tão longa, dedicam suas poucas energias restantes para reproduzir-se antes de morrer.

Mas o pior de tudo é que talvez fiquemos sem as enguias antes de decifrar completamente o seu mistério.

Risco crítico de extinção

A enguia enfrenta atualmente um colapso populacional. Desde 1980, sua população foi reduzida em mais de 95%.

Hoje, a enguia é considerada uma espécie em risco crítico de extinção – o maior nível de ameaça. Nossos avós não acreditariam nesta situação.

Na península ibérica, a enguia perdeu 85% do território que ocupava historicamente, devido ao efeito de barreira das represas. Hoje, parece estranho que os espanhóis pescassem enguias nas regiões de Palencia, Soria ou Albacete, mas essa atividade era habitual antes da proliferação das represas.

E, quando as represas permitem a passagem das enguias rio acima, o resultado pode ser ainda pior, já que a viagem de volta para o mar frequentemente resulta em atravessar turbinas geradoras de eletricidade, com poucas possibilidades de sobrevivência.

A pesca da enguia é uma indústria centenária, mas sua exploração comercial é mais recente. A pesca da enguia no rio Guadalquivir, na Espanha, começou nos anos 1970 e pode ter causado uma forte superexploração da espécie.

A luta para salvar as enguias

O Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla em inglês) propôs, em 3 de novembro passado, a proibição completa da pesca da enguia em todos os seus habitats, todos os estágios de vida e para qualquer propósito a partir de 2023.

Seria muito importante que as instituições regionais, nacionais e continentais da Europa implementassem rigorosamente essa moratória.

A avidez dos mercados asiáticos pelo consumo da enguia (após a diminuição das espécies locais) fez com que o comércio ilegal das enguias europeias e americanas, devido às suas enormes margens de lucro e seus canais de distribuição, ficasse mais parecido com o tráfico de drogas do que com uma atividade pesqueira.

A facilidade de transporte das enguias em sacos plásticos permite o desenvolvimento dessa atividade ilegal. Análises genéticas demonstram que a carne da enguia europeia, cuja exportação é proibida, é frequentemente encontrada no comércio asiático. E, do Oriente, ela frequentemente viaja de volta para a Europa.

O transporte internacional das enguias também favoreceu a difusão de parasitas, que podem dificultar a viagem dos animais remanescentes até o mar dos Sargaços para reprodução.

E, como se não fosse o bastante, invasões biológicas incipientes representam mais uma ameaça para a enguia. O peixe-gato-europeu e o siri-azul são particularmente preocupantes.

Conhecer o enigma da enguia e acabar de decifrar um dos mistérios mais antigos da história natural é um objetivo importante. Mas muito mais importante do que ele é a própria enguia em si.

Perder a enguia seria perder um animal único, com função própria nos ecossistemas que ela ocupa, além de milhares de anos de fascinação, mistério, sustento e cultura humana.

É importante que isso não aconteça. É preciso tentar evitar sua extinção.

* Miguel Clavero Pineda é cientista titular da Estação Biológica de Doñana, na Espanha.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original em espanhol.

Fonte: BBC Brasil

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