Então começou a vibração invisível que toma conta da maioria das pessoas, pela proximidade das festas de final de ano. A mídia bombardeia, as promoções lançam seus anzóis, chapeuzinhos de Papai Noel podem ser vistos em vitrines, e a palavra ‘panetone’ é escutada em conversas dentro do ônibus. Tenho horror a panetone, me parece um pão mumificado que só serve para presentear em amigo-secreto no trabalho. Ou para ser esquecido em um armário.
Eu não sei exatamente o que se apropria do HD mental de tanta gente ao mesmo tempo, mas vejo que o sistema sorri e palita os dentes, chupando os fiapinhos, satisfeito com o impacto de tsunami do consumo sobre o mercado. Uma família feliz parece estar obrigada a já se preocupar com o peru, tender, chester, bruster ou Frankstein similar. O carimbo de ‘vivemos bem mais um ano, né?’ só vale se houver uma ave peituda morta e temperada sobre uma mesa, senão é assumir o fracasso na vida. Meio-termo, nem pensar.
E a tradição, essa corrente em que todos incluem mais um elo antes de se prenderem, autoriza e justifica uma repetição chata, junto a parentes chatos e copos de cristal usados apenas uma vez ao ano, borbulhando no final de dezembro. Para combinar com o tamanho padrão do forno de cozinha, muito bebê-porquinho já entra no cadafalso que é para caber na bandeja, depois. Poupa-se de uma vida de engorda, confinamento, tédio & terror, merda & dor, porque os humanos decidiram que… digamos… ‘têm’ que comer porco na virada do ano porque o porco fuça para frente, ou qualquer outra frase-explicação séria candidata ao Nobel. Talvez a hipocrisia diminuísse 1% se essas pessoas todas assumissem sua superstição, TOC social e celebração pelo prazer do palato, ponto. Do que tentar dar contornos outros, risíveis para quem assiste a tudo isso de fora.
Não, eu não tomo parte. Me libertei, há alguns anos. Um processo desconfortável – pois todos os holofotes-perguntas-olhares voltam-se para si, mas que tem o efeito da bigorna deixada para trás, depois de muito carregar, do sapato apertado que finalmente é tirado do pé. Minha atitude terá traços de impacto a menos na marretada final em muitos animais, mas eu sou apenas um. Multiplicador, mas apenas um. Não vislumbro peru, não gasto em presente, não asso lombo, não produzo uma sacolada de lixo no dia seguinte à ‘festa’, não estouro champanhe no riso fácil, não pulo sete ondas nem escolho cor da cueca. Realmente é ridículo para quem vê de fora, e uma desgraça a menos para tantos animais cuja existência – desgraçada, no death row – é programada conforme as demandas das redes de supermercado.
Não, eu optei por não mais fazer parte dessa onda humana que se sente feliz & esperançosa conforme marca a data no calendário. Eu escolhi abrir mão de muita coisa, para não fazer o meu dinheiro pagar a marreta, a pistola pneumática, a gaiola, o brete, a ordenhadeira, o arreio, a facada, a degola, o ‘abate humanitário’, o ‘abate religioso’, a criação e procriação, a vida de tantos animais nascidos já como defuntos, o cronômetro em contagem regressiva para a morte e o estourar de champanhe. A última hora.