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Faz um ano

22 de novembro de 2013
5 min. de leitura
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Diversas vezes nos sentamos diante de nossa velha máquina de escrever Olivetti para redigir estas linhas, porém a emoção não permitia que um texto coerente se concretizasse. No dia 3 de dezembro de 2012, o Santuário do GAP de Sorocaba teve talvez o seu dia mais trágico e triste.

Como falava a Fernando Gabeira, na excelente matéria que realizou em nosso Santuário na ocasião da visita de Peter Singer veiculada pela Globo News semanas atrás, temos chorado muito no Santuário, em algumas oportunidades nas quais nos sentimos impotentes para salvar a vida de alguns de nossos chimpanzés mais carismáticos e históricos.

A morte de dois chimpanzés numa madrugada foi um golpe terrível para nós, que levávamos mais de um mês lutando, com ajuda de veterinários e médicos humanos, para salvar aquelas vidas valiosas.

Porém, a nossa experiência nos disse que quando um chimpanzé adoece com alguma gravidade é muito difícil, talvez até impossível, mantê-lo vivo. Temos uma enorme limitação, já que não temos como explicar-lhes os problemas que os afetam e o tratamento que temos que fazer; e eles não têm como nos transmitir em detalhes o que sentem em cada momento. Imobilizá-los, só podemos fazer com anestesia, que termina criando outros problemas em seu estado geral, já debilitado.

Drº Predro e Vitor (Foto: Arquivo Pessoal)
Drº Predro e Vitor (Foto: Arquivo Pessoal)

Vitor veio para o Santuário com menos de 10 anos de idade. Ele perdeu o seu braço esquerdo quando tinha poucas semanas de vida onde morava, no Criadouro Comercial de Morrete, no Paraná. Ele foi machucado por conta de uma briga entre fêmeas. Uma primeira cirurgia amputou o antebraço e ao infeccionar a ferida, uma nova amputação foi feito a nível do braço. Vitor também padecia de Otite crônica, mau tratada no Circo onde terminou morando vários anos, em condições precárias. Durante vários anos conseguimos controlar aquela infecção, mas ele se re-infectava com frequência, introduzindo diversos objetos no ouvido quando sentia dor ou coceira. Num sábado o encontrei vomitando e reclamando de dor do ouvido. Ele desenvolveu uma Pancreatite aguda que conseguimos reverter, porém o ouvido já tinha sido perfurado, a infecção atingiu as Meninges e não conseguimos revertê-la. Durante mais de um mês lutamos junto com ele, todos os tratadores e veterinárias do Santuário, para que aquele ser forte, grande, emocional, que tantas alegrias nos deu, não desaparecesse entre nossas mãos. E ele se foi…

Ao mesmo tempo, a uma centena de metros, outro drama acontecia. O chimpanzé mais conhecido do Santuário, Hulk, lutava contra as sequelas de uma vida miserável, de privações, doenças e feridas, que além de deixá-lo cego, encurtavam sua possibilidade de viver. Nos levamos 10 anos para resgatar Hulk. Ele morou em vários circos, foi exibido em amostras de pequenos animais por todo país. Uma vez me sentei com ele num sofá, numa exibição em Itu e tirei uma foto com ele. Nesse dia – sem saber que era totalmente cego – prometi resgatá-lo daquela vida de exploração e miséria.

Drº Pedro e Hulk (Foto: Arquivo Pessoal)
Drº Pedro e Hulk (Foto: Arquivo Pessoal)

Já no Santuário, quando consegui ficar a sós com Hulk e vi suas limitações pela total falta de visão, o desespero dele de escutar os gritos de outros chimpanzés e não poder vê-los, tocá-los, abraçá-los, que me pedia a mão para ajudá-lo a andar e não cair, novamente não resisti e chorei junto com ele durante longos minutos. Ele sentiu minha emoção e me abraçou. Ai também prometi recuperar sua visão.

Meses mais tarde, conseguimos a colaboração de um dos mais eminentes oftamologistas brasileiros, que se dispôs, sem conhecer Hulk, a ir ao Santuário, com seus assistentes e equipamentos, e fazê-lo enxergar. Quando o Dr. Walton Nosé veio até o Santuário, eu estava sentado com Hulk sob uma palmeira à beira da piscina. No primeiro olhar, ele falou para a Dra. Camila Gentile, veterinária, que o anestesiasse, que ele ia voltar a enxergar.

Horas mais tarde, Hulk se recuperava da operação. Ainda cedo eu estava com ele e saímos à luz do dia, ele viu sombras, viu as folhas se mover, de mãos dadas me levou para a porta do recinto, ele sentiu o vento em sua face e começou a enxergar. Escutou os gritos de seus amigos chimpanzés à distância, me pediu que o acompanhasse, já andava sozinho, ele queria redescobrir o mundo que alguns humanos malditos tinham lhe roubado ao jogar água fervendo em seus olhos para cegá-lo e usá-lo à vontade.

Hulk teve alguns anos de uma vida feliz, acompanhado primeiro de Tata, mãe do Guga, que morreu de câncer oral fulminante, e depois com Catarina, por quem se apaixonou profundamente e não aceitava que ninguém a tocasse. Porém, o corpo de Hulk estava dizimado pelos maus-tratos, sequelas dos golpes que deve ter recebido. Ele tinha uma sinusite crônica. Nós lutamos contra todas aquelas sequelas, até que os rins decidiram não funcionar mais e aí pouco podíamos fazer, apenas acompanhar sua agonia e mitigá-la.

Ainda amanhecendo fui ver o Vitor, seu corpo inerme jazia no túnel, onde ele comia e dormia, e nos esperava a cada manhã com um sorriso. As lágrimas novamente invadiram a nossa face, porém sabíamos que a tragédia não tinha terminado, o corpo debilitado e inerme de Hulk também nos esperava, a poucos metros dali, para lhe darmos o último abraço.

Esse dia talvez foi o pior de minha vida, por isso demorei um ano para compartilhar os detalhes com aqueles que seguem a nossa luta pela defesa incansável dos grandes primatas e os animais em geral.

Vitor e Hulk, dois grandes companheiros de luta em nossa vida, nos abandonaram para sempre, mas suas histórias e o calvário de suas vidas permanecerão para sempre e nos farão lutar mais ainda pelos direitos de todos eles.

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