Grandes frigoríficos operam sem condições de funcionamento em plena Amazônia e adulteram seus produtos. Servidores federais que deveriam fiscalizá-los são subornados mediante propina – alguns deles atuam inclusive como pecuaristas e comercializam gado com empresas suspeitas. Numa ponta, financiamentos públicos capitalizam projetos; na outra, produtos impróprios são vendidos nos centros urbanos do Sul e Sudeste do país.
Pelo menos um caso que pode exemplificar esse tipo de cadeia insustentável (do ponto de vista social, econômico e ambiental) foi identificado – e desmantelado – em Rondônia por uma investigação conjunta do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF). O trabalho durou um ano e dois meses e contou com interceptações telefônicas e de correios eletrônicos. As descobertas geraram a Operação Abate, deflagrada em junho deste ano, que mobilizou um efetivo de 250 policiais federais e 65 viaturas.
As apurações apontam a prática de diversos crimes cometidos para favorecer frigoríficos – entre eles os gigantes JBS-Friboi e Margen -, laticínio e curtume, que teriam o respaldo de uma “quadrilha” montada na Superintendência Federal da Agricultura em Rondônia (SFA/RO), repartição local do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Entre as infrações, está a concessão de laudos frios e a liberação para funcionamento das unidades de produção. As supostas fraudes ocorriam, pelo menos, desde 2007.
Nesta quarta-feira (22), o MPF em Rondônia (MPF/RO) ingressou com ação civil por improbidade administrativa, pedindo a condenação de nove servidores da SFA/RO, cinco frigoríficos, um laticínio, um curtume e dez empresários e funcionários das indústrias. O deputado federal Ernandes Amorim (PTB-RO) também aparece na ação. Os procuradores avaliam que várias irregularidades se destinavam a favorecê-lo diretamente. O MPF exige o pagamento de R$ 5 milhões à União pelos danos morais coletivos e solicita que a Justiça determine o sequestro e a indisponibilidade de bens dos acusados.
Reginaldo Trindade, do MPF/RO, é um dos responsáveis pelo caso. Um mês após a Operação Abate, ele afirma que as atividades do grupo foram inviabilizadas. “A quadrilha que existia na SFA/RO, e que era responsável pelo esquema de favorecimento de empresas e pagamento de vantagens indevidas, foi completamente desarticulada. Os principais integrantes foram presos e assim se encontram até hoje. Os servidores da SFA/RO foram também afastados na ação cautelar proposta pelo Ministério Público Federal”.
O superintendente da PF em Rondônia, Ney Ferreira de Souza, confirma que 15 pessoas permanecem presas de forma preventiva. Entre elas, está o superintendente da SFA/RO, Orimar Martins da Silva, e o seu substituto João Carlos Barbosa, conhecido como “João do Pulo”. Além da cúpula do órgão, também estão detidos fiscais agropecuários, executivos de frigoríficos – como o gerente da unidade de Ariquemes (RO) da Margen, Kléber Nantes Cácerez – e empresários do grupo Bihl, dono do curtume Nossa Senhora Aparecida. Ao todo, a Justiça Federal expediu 22 mandados de prisão – sete deles eram referentes à detenção temporária por cinco dias.
Irregularidades
Segundo a denúncia apresentada pelo MPF, vários crimes eram praticados em Ariquemes (RO). O frigorífico Quatro Marcos, por exemplo, teria conseguido aprovação de seu projeto de construção e autorização para funcionamento de maneira ilícita. Já o frigorífico Amazon Meat apresentava irregularidades, mas os fiscais teriam recebido ordens de seus superiores para não adotar nenhuma providência que prejudicasse a empresa. Além disso, o Margen, que está em recuperação judicial e não tinha condições para exportar carne, conseguiu obter laudo favorável. O Frigopeixe, frigorífico de pescado, também foi favorecido. Entre outras práticas, carregamentos apreendidos por órgãos ambientais eram liberados pela intervenção dos servidores.
Em Ouro Preto D`Oeste (RO), o laticínio Três Marias e o curtume Nossa Senhora Aparecida também foram apontados como beneficiários do esquema ilegal. No laticínio, as amostras de queijo para análise de qualidade eram escolhidas previamente, assegurando-se de saída que estariam higienizadas e seriam aprovadas nos testes. Já o curtume teria obtido de forma ilícita a aprovação de projeto de instalação e autorização para produzir. Ao todo, a denúncia do MPF possui mais de 80 páginas.
Diante das evidências verificadas, o MPF/RO solicitou à Justiça a paralisação parcial do Margen, no tocante à exportação. As paralisações totais de JBS-Friboi, Amazon Meat, Quatro Marcos e do curtume Nossa Senhora Aparecida também foram pedidas. No entanto, a Justiça ainda não deferiu a liminar e está aguardando a realização das auditorias internas pelo Mapa. A medida foi solicitada pelo MPF/RO em 18 de junho.
Ao todo, foram duas solicitações dirigidas ao ministro da Agricultura, Abastecimento e da Pecuária, Reinhold Stephanes (PMDB). Além da realização de uma auditoria “independente”, os procuradores exigem uma nova comissão de sindicância interna – segundo o MPF, há indícios de que a atual comissão “camuflava” eventuais irregularidades. O objetivo é assegurar que as empresas tenham efetivas condições de voltar a operar.
“Oficialmente ainda não recebemos nada”, informa Reginaldo Trindade. As recomendações devem ser remetidas ao ministro Stephanes via Procuradoria Geral da República (PGR). O procurador afirma não saber quanto tempo a PGR levou para enviá-las. A Repórter Brasil apurou que o documento esteve no gabinete da procuradora-geral interina da República Deborah Duprat – que estava no cargo desde o fim de junho -, e ainda não foi despachado para o Mapa. O novo procurador-geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, assumiu o cargo nesta quarta-feira (22).
Fiscais pecuaristas
Nove servidores da SFA em Rondônia foram denunciados pelo MPF. Há suspeitas de que pelo menos dois deles sejam pecuaristas que também forneceriam animais para as empresas fiscalizadas. A informação é do próprio advogado do Margen, um dos frigoríficos processados. Ney Moura Teles afirma que dois fiscais agropecuários da SFA/RO fizeram abate na unidade do Margen de Ariquemes (RO). Eles teriam recebido “mais de R$ 300 mil” nos últimos três anos. “São operações lícitas”, alega o advogado, que utiliza a justificativa para negar a acusação de suborno e de obtenção de vantagens ilícitas.
Ney atribui a suposta “confusão” a pessoas “despreparadas” por trás de escutas telefônicas. “Eles (os fiscais) ao mesmo tempo são pecuaristas e têm criação de bovino. Por conta desse gado, o Margen tem as notas fiscais e efetuou o pagamento. Já ouviu dizer que alguém paga propina com cheque nominal?”, pergunta. Ele afasta a tese de conflito ético e tenta eximir a empresa de responsabilidade. “Isso é um problema do Mapa com os fiscais”.
O advogado do Margen diz que já entrou com pedido de habeas corpus em favor do gerente Kléber Nantes Cácerez e afirma que a unidade denunciada nunca exportou nem pediu autorização para fazê-lo. “A empresa privada funciona como um bar ou um restaurante. Não tem que pegar qualificação de quem chega lá para comprar. A empresa não tem que pedir certidão de idoneidade da pessoa”, argumenta. Essa não é a primeira vez que o Margen tem problemas com a PF. Os sócios da empresa chegaram a ser presos pela Operação Perseu em 2004, sob a acusação de sonegar R$ 150 milhões em tributos e contribuições ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Reginaldo Trindade, do MPF/RO, confirma que um dos servidores recebeu mais de R$ 368 mil nos anos de 2007 e 2008 da Margen. O caso também foi objeto de investigação e o fiscal foi denunciado à Justiça Federal. Ele afirma, contudo, que é difícil dizer se esse tipo de situação – fiscal pecuarista que fornece gado para empresa fiscalizada – é comum no Estado. “O que identificamos foi, pelo menos, um caso dessa natureza. No entanto, a investigação não chegou a perquirir outras hipóteses, até porque o foco central era o favorecimento das empresas mediante o pagamento de propina”, diz.
A Repórter Brasil entrou em contato com Mapa e encaminhou questões no dia 14 de julho para ouvir a posição da pasta sobre pontos relativos à Operação Abate. O Ministério não respondeu às perguntas até o fechamento desta reportagem. Após as denúncias públicas, o ministro nomeou o veterinário Abrão Buchadist como interventor para substituir o superintendente federal da Agricultura em Rondônia, Orimar Martins da Silva, preso pela PF.
Denúncia
A investigação teve início em março de 2008 após denúncia anônima sobre supostas irregularidades na unidade de Porto Velho do JBS-Friboi, líder mundial em exportação de carne bovina e em capacidade de abate. Segundo a acusação, o frigorífico aumentava artificialmente o peso da carne acrescentando água ao produto na câmara de resfriamento. Em comunicado, o JBS afirma não ter “qualquer tipo de ligação a crimes associados a este inquérito que envolve a Superintendência Federal da Agricultura em Rondônia”.
Após verificar o indício de fraude, o MPF instaurou um inquérito civil. Cinco servidores da SFA/RO apresentaram à Procuradoria diversos documentos e informações sobre o suposto esquema de favorecimento às empresas. “A partir de então, o objeto da investigação foi alargado e a PF foi comunicada para instaurar inquérito policial”, conta o procurador da República Reginaldo Trindade. A Operação Abate cumpriu mandados judiciais em nove estados – Rondônia, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Pará e Rio Grande do Norte e Paraíba – e no Distrito Federal.
De acordo com a investigação, a fraude se espalhou pelas diferentes unidades da SFA/RO, atingindo a cúpula do órgão. O esquema se sustentava a partir de dois pilares: pagamento de propina e pressão contra fiscais que não integrassem o grupo. “Os servidores não enquadrados eram perseguidos, pressionados, ameaçados de morte e transferidos para outros setores ou empresas que não participavam do esquema. Tudo era feito para que parassem de incomodar e contrariar os interesses da quadrilha”, conta o procurador. Pelo menos três fiscais foram ameaçados de morte.
O grupo de fiscais que integrava a “quadrilha” agia por meio de omissões na fiscalização, sumiço de documentos contrários aos interesses das empresas protegidas e simulação de vistorias. Os pagamentos dos frigoríficos aos servidores da SFA/RO seriam feitos por cheques, depósitos em dinheiro e documento de ordem de crédito. Os fiscais acusados deixavam guias de transporte e autorizações para abate assinados em branco.
Ao todo, 27 pessoas foram denunciadas à Justiça Federal. Os envolvidos no esquema ilegal podem responder pelos crimes de falsidade ideológica, advocacia administrativa (patrocinar interesse privado perante a administração pública), prevaricação, corrupção ativa ou passiva, concussão (exigir pagamento de vantagens indevidas), condescendência criminosa, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Eles podem sdr condenados a cumprir penas que, se somadas, chegam até a 107 anos de prisão.
Financiamento
A investigação apresenta indícios que envolvem outros órgãos públicos. Segundo o MPF, há suspeitas de que o grupo Bihl, apontado como um dos principais beneficiados, pagava propina a servidores públicos da SFA/RO, Banco da Amazônia, Agência Nacional da Energia Elétrica (Aneel), Secretaria do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso e Ministério da Integração Nacional (dois servidores dessa pasta, Vitorino Luis Domenech Rodriguez e Luiz Fernando Soares Pereira, também foram denunciados). O objetivo do grupo econômico -conhecido como Redenção – seria conseguir empréstimos e financiamentos em instituições públicas. A família Bihl nega as acusações.
“Esse grupo merece uma atenção especial, pois possui vários empreendimentos financiados pelo poder público e muitos, senão todos, com irregularidades”, afirma Reginaldo Trindade. Ele irá pedir ao MPF em Mato Grosso, onde fica a sede do grupo, uma investigação detalhada a respeito – a denúncia oferecida pelo MPF restringiu-se aos crimes cometidos em Rondônia.
O MPF apurou que o grupo Bihl, por intermédio de lobistas, conseguiu financiamento do Ministério da Integração Nacional (MIN), com recursos geridos pelo Basa. A denúncia acabou resultando na prisão do diretor de Ações Estratégicas da instituição bancária, Augusto Afonso Monteiro de Barros, suspeito de receber propina para liberar crédito. Ele já foi liberado.
Em comunicado oficial, o Basa diz que Augusto Afonso Monteiro de Barros não é mais diretor da instituição, por uma decisão do Conselho de Administração da empresa. Apesar de decidir pelo afastamento de Augusto, o banco alega que, “em princípio”, não há nada contra a empresa no processo.
Questionada pela reportagem se medidas foram adotadas para aperfeiçoar os procedimentos de liberação de crédito, a empresa sustenta que possui um “processo segregado e colegiado”. “(O processo) não possibilita que uma única pessoa, ainda que seja um diretor, aprove operações. Além disso, o banco está sempre aperfeiçoando seus mecanismos de controles internos e está sempre pautando suas decisões na ética e transparência”, diz a nota.
Pressão
Os resultados da Operação Abate repercutiram na Câmara dos Deputados. A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural pretende convocar Reinhold Stephanes para dar esclarecimentos sobre a ação e a lei que rege a Inspeção de Produtos de Origem Animal. O autor do requerimento, aprovado na semana passada, é Ernandes Amorim (PTB-RO). Ele é um dos acusados na ação civil por improbidade administrativa movida pelo MPF/RO. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) avalia outra denúncia de desmatamento irregular de 1,6 mil hectares da floresta amazônica em fazendas que pertenceriam a Amorim, que nega ser dono das áreas.
O petebista é apontado pela Procuradoria como o responsável pela nomeação do superintendente da SFA em Rondônia, Orimar Martins da Silva, preso pela PF. O MPF relatou as supostas irregularidades ocorridas para favorecer Ernandes Amorim ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP). No plenário da Casa, o deputado de Rondônia chegou a afirmar que as prisões efetuadas pela Operação Abate ocorreram por “estrelismos” e “simples denúncias”. Ele provoca: “Tenho certeza de que há fundo político e propósito de perseguição nessas prisões que estão ocorrendo em meu Estado”.
Fonte: Repórter Brasil