Proibida por lei e punida com multa de R$ 10 mil, a farra do boi ainda é uma lamentável realidade no estado de Santa Catarina. A prática, de origem açoriana, é realizada frequentemente durante a Quaresma e a Semana Santa, e é marcada pela violência extrema. A psicóloga, ativista e vereadora Priscila Fernandes (PODE) descreve os maus-tratos que os animais sofrem. “A farra do boi é um ato cruel cometido por um grupo de pessoas que se juntam pra ‘farrear’ o boi, ou seja, torturar, machucar, correr atrás do animal, atiçando-o pra que ele corra atrás dos farristas, que geralmente deixam o animal em um local ermo. Também há ocorrências em regiões urbanas, como aconteceu nesse último final de semana, na praia de Bombinhas (SC). O animal é acuado o tempo todo. Embora seja uma prática ilegal e proibida por lei, inclusive com decisão do STF, ainda é vergonhosamente praticada no litoral catarinense, manchando de sangue e de vergonha as pessoas que não compactuam com tamanha covardia e perversidade. Há, inclusive, lei aprovada recentemente em SC que multa os praticantes da farra”, salienta a ativista.
Priscila explica ainda que a prática é difícil de ser combatida pelas autoridades. “A polícia faz o que consegue fazer, pois quando há a denúncia de uma farra, eles buscam ir até o local pra coibir, porém muitas vezes sem sucesso, porque os farristas se comunicam muito rápido e se protegem. Geralmente escondem o animal no mato ou em algum local desconhecido e quando a polícia vai embora, voltam a farrear. Raramente algum farrista é pego em flagrante. O boi é capturado pela polícia é encaminhado para a CIDASC (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina) para ser morto, mesmo o animal estando saudável. Aqui, em Santa Catarina, os animais recebem um brinco com uma numeração para se saber sua origem. Os farristas arrancam esses brincos, tornando o seu reconhecimento impossível. E como somos o único estado livre de febre aftosa sem vacinação, o boi que não está com a identificação recebe a sentença de morte. Eles são mortos sumariamente”, explica a vereadora.
A ativista em defesa dos direitos animais conta ainda a origem dos animais que são maltratados e abusados durantes as farras. “Geralmente, os farristas juntam um valor pra efetuar a compra desses bois, que chegam em caminhões fechados até a região. Há também pessoas de poder aquisitivo ligadas à farra que compram esses animais para dar aos farristas em troca de favores, inclusive temos relatos de políticos envolvidos. Esses bois são de dentro do estado mesmo, de localidades próximas, porém já sem o brinco que iria identificá-lo. E como disse anteriormente, sem a identificação, não é possível reconhecer o guardião e, automaticamente, os criminosos”, afirma. Ela esclarece ainda como denunciar o crime. “Sempre que souberem que uma farra irá acontecer ou que esteja acontecendo é muito importante ligar pra polícia comunicando o local através do 190. Ligar várias vezes. Se puderem fotografar os farristas também é de grande importância para a identificação dos criminosos”, pontua.
Priscila acredita que a educação, a conscientização e as ações voltadas para a sensibilização da sociedade são fundamentais. “A população deve denunciar sempre como forma de não permitir que tamanho ato de crueldade e criminalidade permaneça acontecendo em nosso estado. Não podendo mais carregar essa marca de covardia perante os animais. Além de denúncias, temos que trabalhar de forma preventiva com nossas crianças nas escolas, mas também com as comunidades onde isso mais acontece, pois as pessoas nasceram e cresceram achando isso normal. Temos que mostrar que não há nada de normal em torturar um animal. Outro lugar que precisamos buscar parceria pra ajudar a coibir tamanha monstruosidade é a Igreja, pois geralmente esses atos ocorrem na semana na Quaresma, na qual há todo um ritual religioso. Precisamos que isso seja falado pelos padres, pastores, para que as pessoas que vão até lá para rezar e pedir a um Deus maior, também entendam que todo ser vivo merece amor e respeito. Se ao menos não podem amar por acharem que os animais nasceram para ‘nos servir’, que ao menos os respeitem dentro do possível”, conclui a vereadora.
A advogada e consultora jurídica da ANDA Letícia Filpi contesta a morte dos animais pela CIDASC, órgão agropecuário do estado, e fala sobre a indiferença do poder público. “Santa Catarina é um estado que é permissivo com a farra do boi, é um local onde a prática é considerada crime de maus-tratos e infração administrativa passível de multa, mas o estado continua fechando os olhos, fazendo uma fiscalização totalmente inoperante. Além de tudo, os animais que sobrevivem aos maus-tratos são condenados à morte. A CIDASC mata o animal por que fala que ele está sem brinco, em Santa Catarina todo animal tem que ser brincado, ou seja, ele tem que ter um brinco contendo todas as informações sobre esse animal, quem é o guardião, o estado de saúde, se ele está são, se ele não está, o brinco atesta a sanidade do boi e de onde ele veio. A primeira coisa que um criminoso faz quando pega um boi para torturar na farra é tirar o brinco do animal, porque ele sabe que está cometendo um crime e ele não quer ser identificado pela polícia, mas a orelha do boi está furada, porque o furo é muito visível, mas a CIDASC, mesmo sabendo disso, mesmo sabendo que esses bois estão sãos, porque eles estavam de brinco, ela mata, porque é uma questão de comodismo. Ela tira a vida da vítima que já sofreu maus-tratos. Santa Catarina tem uma atuação muito inócua, muito infeliz no combate à farra do boi, que já deveria ter sido completamente abolida daquele estado, porque tem duas leis amparando a ação da polícia e mesmo assim ainda acontece. É um absurdo, é muito triste, é uma tragédia ainda acontecer isso, mas acontece, infelizmente”, salienta a advogada.
Caso recente
Em desespero, um boi que era perseguido por mais de 50 pessoas durante uma farra do boi entrou em uma pousada e mergulhou em uma piscina para fugir das agressões na última sábado (27). O episódio lamentável ocorreu na cidade de Bombinhas, em Santa Catarina. Segundo a equipe da Polícia Militar que atendeu a ocorrência, o animal estava exausto e desnorteado, chegando a colidir com carros durante a fuga. Apesar da prática de farra do boi ser crime, nenhum dos participantes foi detido. A polícia apenas usou munições especiais para dispersar a multidão. O animal foi encaminhado para a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (CIDASC) e, apesar de aparentar estar saudável, foi condenado à morte e sacrificado. Também no dia 27, uma ocorrência de farra do boi foi registrada no bairro Rio Tavares, em Florianópolis. Os agressores fugiram com a chegada da polícia. Apenas um homem foi preso. O animal entrou em uma região de mata e ainda não foi encontrado.