Existia um trecho da rodovia Trans-Canadá tão perigoso conhecido como “The Meat Maker”. A então infame seção da estrada que corta transversalmente o Parque Nacional Banff, um conjunto de montanhas de tirar o fôlego e lagos glaciais nas Montanhas Rochosas Canadenses, registrou em média cerca de 100 colisões entre veículos e alces por ano.
Nos primórdios dos anos 80, um simples projeto de expansão de rodovia alargou a estrada movimentada de duas para quatro faixas, com o objetivo bônus de solucionar o problema de mortes na estrada de Banff ao permitir que os animais atravessassem em segurança. Havia poucos indícios de que, em décadas, o parque nacional mais antigo do Canadá apresentaria a maioria das estruturas de travessia para animais selvagens do que em qualquer lugar do mundo, incluindo as 38 passagens subterrâneas (túneis) e seis viadutos (pontes) em 2014. Era, talvez, ainda menos óbvio que esse projeto geraria um programa de monitoramento de animais selvagens fadado a movimentar os paradigmas ecológicos das rodovias mundiais.
“O foco no início não era sobre grandes carnívoros ou conservação de conectividade,” afirma Tony Clevenger, um pesquisador científico sênior da vida selvagem no Western Transportation Institute na Universidade Estadual de Montana, no Estados Unidos. “Era sobre proteger os motoristas”.
Até metade e fim dos anos 80, as doze primeiras passagens subterrâneas do parque estavam concluídas. Após elas, vieram mais passagens subterrâneas até metade dos anos 90, como também dois viadutos (cada um com cerca de 50 metros de largura) em decorrência da preocupação crescente com lobos e ursos pardos.
“É onde eu entro,” diz Clevenger. “Eles construíram aquelas primeiras dezenas de passagens subterrâneas, mas elas não eram muito monitoradas. O parque precisava de boas informações com base científica para guiar o design, o planejamento e o local na última etapa.”
As estruturas de travessia em si não são um conceito novo. A primeira ponte para vida selvagem foi construída na França nos anos 50 (não com propósitos de conservação, mas para ajudar os caçadores a guiarem os veados), seguida pela construção de mais travessias ao redor da Europa. Contudo, essas estruturas não eram tipicamente monitoradas. Não havia muitos dados a respeito de quão bem essas travessias funcionavam ou quais espécies as utilizavam.
Quando ele chegou em Alberta, Clevenger começou um contrato de quatro anos com a Parks Canada para colher os dados necessários para a etapa final da construção da travessia de Banff.
Os conhecimentos que Clevenger e seus colegas coletaram nos seus primeiros anos de pesquisa serviram de informação para a construção de quatro viadutos e cerca de dezessete passagens subterrâneas. Porém, quando seu contrato acabou, Clevenger percebeu que ele não estava pronto para abandonar Banff. Por isso, ele formou uma parceria com organizações de conservação para continuar sua pesquisa, e mudou o foco para os benefícios das travessias de conservação.
“Depois dos primeiros cinco anos, eu me dei conta que esse era um lugar único no mundo para fazer esse tipo de pesquisa,” disse Clevenger. “Ninguém estava fazendo isso em lugar algum, e ninguém tinha esse tipo de laboratório para fazer esse tipo de pesquisa – especialmente um parque nacional onde você tem toda essa pesquisa de vida selvagem ocorrendo ao mesmo tempo, a qual podíamos explorar.”
Até esse momento, Clevenger e seus colegas já tinham publicado um estudo mostrando que as estruturas de travessia para vida selvagem reduziam efetivamente as colisões entre veículos e veados em cerca de 86%. Para averiguar se as travessias também beneficiam populações inteiras de animais, não apenas os que poderiam acabar na estatística de atropelamento, Mike Sawaya, que estava então terminando um doutorado na Universidade Estadual de Montana, trabalhou com seu orientador, Steven Kalinowski, e Clevenger para desenvolver uma técnica simples de coletar pêlos de ursos e ursos pardos quando eles utilizassem as estruturas.
Através da análise do DNA, os pesquisadores podiam determinar a espécie, sexo e a identidade individual de cada animal que passava. Por fim, a pesquisa proporcionou evidência, pela primeira vez, de que as estruturas de travessia possibilitavam às populações de ursos que estavam isoladas de cada lado da estrada procriassem. Os animais não estavam apenas fazendo uso da travessia – estavam dependendo delas para prevenir o isolamento genético.
“Nos primeiros dois ou três anos do trabalho, eu ainda não compreendo isso, mas havia muito ceticismo da parte de biólogos que acreditavam que as estruturas não eram efetivas, mesmo que eles não tivessem dados para corroborar o argumento e não tivessem feito qualquer monitoramento,” afirma Clevenger. “Alguns desses biólogos disseram que a única maneira de efetivamente salvar a rodovia seria aumentá-la 72 quilômetros pelo parque, o que, claro, é impossível. Entretanto, nossos dados mostraram que as medidas de travessia para vida selvagem eram altamente efetivas.
“E não era apenas os dados que compartilhamos”, acrescentou Clevenger. “Era também apenas o fato de que os viadutos foram construídos. Naquela época, esse era um argumento persuasivo para as pessoas do Departamento de Transporte que essas estruturas funcionam. Não eram apenas uma coisa fantasiosa e conceitual. Eram reais.”
Parte de sua área
No sul de Banff, no estado de Washington, nos EUA, os engenheiros do Departamento de Transporte, e outras agências estaduais e federais começaram a discutir planos para um projeto de expansão de 24km de um trecho de outra auto-estrada transcontinental nos anos 90. Com o volume do tráfego aumentando na I-90, barreiras reflexivas estavam sendo postas entre as faixas em direção a leste e oeste, para garantir a segurança dos motoristas à noite – uma solução alternativa que estava criando um impedimento extra à vida selvagem.
“O Ato da Administração da Floresta Nacional diz que precisamos proteger a viabilidade das espécies,” diz Patty Garvey-Darda, uma bióloga do Serviço Florestal, que começou a trabalhar no projeto em 1999. “Estava claro que a I-90 era uma barreira, pondo em risco o isolamento demográfico das Cascatas do Sul.”
Para investigar como implementar da melhor maneira suas próprias estruturas de travessia em Washington, Garvey-Darda e alguns engenheiros que estavam colaborando com ela viajaram à Banff para ver com os próprios olhos os viadutos e passagens subterrâneas.
“Banff tem sido formidável porque eles fizeram um bom trabalho pesquisando e mostrando que essas estruturas são bem sucedidas,” disse Garvey-Darda. “Essa é uma razão importante pela qual monitoramos.”
A construção das estruturas de travessia na I-90 começou depois que a proposta do projeto completou o processo de revisão da Lei de Política Ambiental Nacional (NEPA) em 2008, com passagens subterrâneas e um viaduto construído em mais da metade da área, com data e planos para estruturas adicionais e mais largas no futuro. Enquanto o projeto da I-90 se inspirou em Banff, a equipe fez inúmeras mudanças no design para acomodar o ambiente local, incluindo o crescimento da vegetação local nas passagens subterrâneas.
“Geralmente, você não tenta criar vegetação nas passagens subterrâneas,” disse Garvey-Darda. “Às vezes, isso faz muito sentido – depende de qual espécie você está tentando conectar. Mas, no nosso caso, esse é um ecossistema de floresta antiga na qual você tem um grande número de espécies de baixa mobilidade, como os moluscos terrestres e as salamandras que não estão ligadas à água. Elas não se movem para muito longe. E temos uma boa quantidade dessas espécies de musaranhos. Pensar que elas vão passar por baixo de algo que não tem vegetação, e serão capazes de restaurar a conectividade genética entre as populações é improvável.”
Na esperança de incorporar as travessias de uma maneira ainda melhor com seus arredores. Garvey-Darda e os colegas também estão considerando a ideia de inocular o solo sobrejacente com fungos nativos raros da terra ao redor da I-90.
Depois de décadas de preparação, Garvey-Darda está desfrutando do resultado da colaboração conjunta. Esse ano, ela e sua equipe observaram um urso preto usar a travessia pela primeira vez. E ela nota que as estruturas se tornaram apenas uma outra parte do habitat local para os veados e alces, os quais são frequentemente vistos relaxando nas travessias, mastigando as plantas nativas e cuidando dos seus filhotes.
“Eu nunca pensei que um veado e um alce iriam se adaptar e usar as estruturas de travessia como parte de sua vida,” acrescentou Garvey-Darda. “É muito mais que legal para mim.”
Entretanto, as estruturas de travessia para a vida selvagem da I-90 apresentam seus desafios – um deles, as pessoas. Embora, Garvey-Darda tenha implementado o fechamento de uma área de cerca de 300m em cada lado da I-90, para desencorajar os seres humanos curiosos de adentrarem as travessias exclusivas para animais, as pessoas ainda se sentem tentadas a dar uma olhada. Se não tratado com cuidado, isso pode gerar um problema completamente novo.
“Se as pessoas estão nas estruturas, os animais estarão mais propensos a irem para a rodovia,” ela afirma. “Uma vez que a rodovia esteja completamente cercada (para levar os animais diretamente às travessias), você pode ter uma horda de alces dentro da cerca – e agora o risco de segurança é muito pior.”
A estrada é uma visitante
Assim como com a rodovia Trans-Canada de Banff e a I-90 de Washington antes de suas transformações, os acidentes eram comuns no trecho da US-93 que cruza a Reserva Flathead Indian, em Montana. Mas, no início dos 90, quando o Departamento de Transporte de Montana (MDOT) começou a planejar o alargamento da rodovia, uma coletânea de desafios começou. Por exemplo, a MDOT queria uma rodovia de quatro faixas para acomodar o aumento do tráfego e as preocupações com segurança.
Contudo, enquanto as Tribos Confederated Salish e Kootenai (CSKT) que moram na reserva também queriam melhorar a segurança da rodovia, elas estavam preocupadas com a possibilidade do projeto ameaçar a ecologia local e destruir o sentimento de cidade pequena da comunidade local.
“As pessoas iriam dirigir em alta velocidade, mais pessoas iriam se mudar para cá, e se tornaria uma comunidade satélite para as cidades maiores ao norte e ao sul de nós,” disse Whisper Camel-Means, um biólogo da vida selvagem que trabalha para o Programa Administração da Vida Selvagem da CSKT. “Isso poderia elevar os preços das moradias e fazer com que os membros das tribos não pudessem arcar com os custos de habitação em sua própria reserva.”
O projeto não podia continuar sem a permissão das tribos. Sem as tribos e a MDOT dispostos a cederem, os governos permaneceram presos em um impasse por uma década.
“As reuniões foram contenciosas,” Camel-means disse. “As pessoas não estavam concordando umas com as outras. Era necessário que pessoas progressistas da Administração Federal de Rodovias e do Departamento de Transporte de Montana aceitassem que as tribos tinham poder para controlar as políticas de decisão na reserva. Não cedemos – fomos fortes e mantivemos nossa posição.”
No fim, os esforços das tribos surtiram efeito. Os governos estadual, federal e tribal concordaram em seguir de acordo com o princípio de que a estrada é uma visitante: qualquer desenvolvimento de rodovias deve respeitar as necessidades do povo local e da vida selvagem. Nos anos seguintes, as partes fizeram reuniões a respeito do design para discutir planos para cada seção da estrada, resultando em uma rodovia que oscila entre duas e quatro faixas e contendo um viaduto para vida selvagem e 38 passagens subterrâneas.
Já o projeto da I-90, os responsáveis pelas decisões fizeram um tour pelas estruturas de Banff nas fases iniciais, adaptando o conceito do parque nacional para acomodar o emaranhado de cidades, áreas rurais, residenciais, comerciais e áreas protegidas que constituem a US-93. Marcel Huijser um pesquisador ecologista do Instituto de Transporte do Oeste, na Universidade Estadual Montana, identificou um desafio inerente em paisagens variadas como essa: lidar com seções menores de cerca para guiar animais para as travessias.
“Temos pontos de acesso – muito mais que teríamos no parque nacional,” Huijser disse. “E o que descobrimos é que se você tem o comprimento da estrada que é cercado por menos do que 5km aproximadamente, você não está mais diminuindo com segurança as colisões com mamíferos grandes em 80% a 100%. Temos de ser cuidadosos, especialmente com paisagens multifuncionais onde há pressão para implementar cercas em um comprimento menor, para que não as façamos muito curtas.
Ainda assim, Huijser diz que há mais a celebrar no projeto ambientalmente consciente que veio da perseverança das tribos.
As estruturas de travessia que promovem conectividade para a vida selvagem terrestre “só ocorreram devido à posição legal das tribos”, disse Huijser. “Esse é o aspecto fundamental que não deve ser esquecido sobre o projeto da rodovia 93, porque sabemos como o plano original era: quatro faixas, uma conversão no meio, e um bueiro estreito para a travessia de um riacho.”
Grandes felinos e biodiversidade
Os países tropicais também enfrentam uma necessidade por rodovias mais seguras e sustentáveis. Mas, enquanto muitos animais morrem a cada dia nas rodovias da Costa Rica, as colisões com tamanduás pequenos falham em gerar uma revolta pública desencadeada pelas colisões com os grandes alces.
“Para nós, é um pouco difícil porque no momento na Costa Rica eles não enxergam isso como um problema humano,” disse Daniela Araya-Gamboa, criadora e coordenadora da Wild Cats Friendly Roads Project pela Panthera. “As pessoas não enxergam os animais pequenos morrendo nas estradas. Em um dos nossos projetos com o qual estamos trabalhando aqui, esperamos ter 4000 animais selvagens mortos na estrada por ano. É uma loucura, e é real, e ninguém sabe a respeito disso.”
Quando a Araya-Gamboa começou a trabalhar para a Panthera em 2011, seu projeto coletou dados em uma estrada de cascalho que estava prestes a ser asfaltada, ameaçando a conectividade dos jaguares. Por volta dessa época, ela conheceu Clevenger em um workshop no México e os pesquisadores começaram a trocar ideias.
“Eu fui a Banff porque era meu sonho,” disse Araya-Gamboa. “Eu queria estar lá e ver como as passagens subterrâneas estavam funcionando. Graças ao Tony e ao trabalho que estavam fazendo lá, a maior parte do mundo pôde ver Banff como um modelo que podemos adaptar para nossos países.”
“O que aprendemos em Banff foi utilizado pelo mundo,” afirmou Clevenger. “Na Ásia, América Latina e África, há um tsunami em termos de infraestrutura de transporte que está começando a ser construída. Isso está causando muito, muito impacto em algumas das áreas mais ricas em termos de biodiversidade do mundo. O que aprendemos na América do Norte provavelmente não é aplicável em algumas situações, mas certamente os princípios gerais são.”
Atualmente, o Projeto Wild Cats Friendly Roads apoia o Ministério Público do Trabalho e Transporte e o Ministério do Meio Ambiente, Energia e Telecomunicações da Costa Rica, incluindo por meio de desenvolvimento colaborativo de um guia desenhado para ajudar o governo a implementar medidas sustentáveis de estrada para a vida selvagem.
Por meio da pesquisa da Arya-Gamboa e do trabalho de outros cientistas, o projeto também identificou como os projetos de estrada podem proteger, especialmente, os jaguares, os quais às vezes são mortos ao atravessarem as estradas nas partes turísticas do país.
Quando a Araya-Gamboa e seus colegas encontraram uma jaguar jovem morta em uma estrada de quatro faixas recentemente construída, eles buscaram descobrir se podiam convidar sua mãe, que com certeza estava nas redondezas, a atravessar em segurança usando um bueiro grande, quadrado e seco. Usando armadilhas fotográficas e uma borrifada de isca para jaguar (a colônia Obssession da Calvin Klein), a equipe tirou uma foto da fêmea atravessando através da estrutura.
“Usamos aquela informação para recomendar tamanhos e designs para medidas em quatro estradas que estão sendo construídas ou expandidas em partes da Costa Rica, onde há jaguares,” afirmou Araya-gamboa.
Além de guiar os jaguares pelas rodovias em expansão, Araya-Gamboa e os colegas objetivam assegurar a passagem segura para os habitantes do dossel, como os macacos, gambás e esquilos para preservar a biodiversidade nas partes mais altas da floresta. Para fazer isso, eles usam travessias arbóreas: pontes simples e baratas de corda que se estendem entre os dosséis separados. Contudo, enquanto travessias arbóreas podem ajudar, alguns animais, incluindo os macacos-aranha, se recusam a utilizá-las.
“Deixamos claro que tem de ser evitado cortar os dosséis,” disse Araya-Gamboa. “Essa é a regra máxima. Se você tem conectividade arbórea natural sobre a estrada, você tem que protegê-la, porque será difícil substituir essa conectividade natural com uma travessia arbórea.”
Para regiões que querem implementar projetos de estrutura de travessia pela primeira vez, a Araya-Gamboa oferece um conselho que é real independente do clima ou ecologia: coleta de dados.
“Se você não tem dados, você não tem nada”, ela disse. “Colete dados, torne as pessoas conscientes do que está acontecendo, e então use aquele momento para começar a melhorar a legislação para implementação de medidas.”