Em pouco mais de um ano de viagem, iniciada em setembro do ano passado, a equipe da Tara Oceans já recolheu mais de 12 mil amostras da água do mar em várias profundidades de diversos pontos do globo, do Mediterrâneo à costa da Ilha de Madagascar, no Oceano Índico. Este material passa por análises tanto em laboratórios a bordo do veleiro de 36 metros – onde são levantados dados como as propriedades fisicoquímicas da água, além de fotografados alguns dos micro-organismos por meio de um equipamento especial -, quanto em terra, onde são conduzidas avaliações genéticas e moleculares do plâncton. E o que os estudos têm revelado surpreendeu até o diretor científico da expedição, o biólogo Eric Karsenti: de 80% a 90% das sequências genéticas analisadas e identificadas até ágora nunca tinham sido registradas antes.
“Este é o maior e mais amplo projeto já feito na área. O plâncton é a base da cadeia alimentar dos oceanos e da própria Terra”, diz. “É uma biodiversidade invisível não só em termos de espécies, mas também da interação entre elas”.
A expedição Tara Oceans permitirá pela primeira vez montar um modelo global da diversidade e distribuição do plâncton nos oceanos, assim como da ecologia desses micro-organismos, diz o diretor científico Eric Karsenti. Com esses dados, será possível entender melhor os impactos das mudanças climáticas no ambiente marinho, assim como traçar estratégias para sua preservação e uso no combate ao aquecimento global.
O que chamamos de plâncton é a variedade mais rica de organismos que existe, não só em termos de diversidade de espécies, mas também de tipologia. “Essa é a área em que vamos fazer a maior diferença. Há uma enorme diversidade de vírus, de bactérias, de fitoplâncton, de zooplâncton. E todos esses organismos vivem juntos, alimentam-se uns dos outros, ajudam uns aos outros e se reproduzem”, diz Karsenti.
Além de toda essa diversidade, o plâncton é movimentado por correntes marinhas muito grandes.
“E porque são movimentados por correntes, a princípio deveríamos encontrar os mesmos organismos em todos os lugares. Mas não encontramos. Precisamos entender o porquê disso e, ainda mais importante, por que não encontramos a mesma combinação de organismos em todas as regiões. É por isso que estamos dando a volta ao mundo coletando essa gigantesca quantidade de dados”, explica Karsenti, que depois vai compilar tudo que está sendo reunido em um modelo de computador que vai simular a distribuição do plâncton nos oceanos, como ele afeta o aquecimento global, as mudanças climáticas e como pode ajudar a enfrentar esses problemas.
Com pouco mais de um terço do percurso realizado, esse esforço começa a dar resultados, conta Karsenti:
“Descobrimos, por exemplo, que alguns vírus e bactérias estão fortemente associados a organismos maiores, infectando-os ou convivendo em simbiose, como as bactérias em nossos intestinos. Isso é muito importante, pois estamos procurando entender como esses organismos interagem para organizar o ecossistema. É exatamente esse o tipo de resultado que estamos buscando”.
Ao longo dos três anos previstos de viagem, a Tara Oceans vai percorrer cerca de 150 mil quilômetros ao redor do planeta. Com a ajuda de sensores a bordo e de informações de satélites, a equipe científica da expedição determina os melhores locais para recolher as amostras. Para tanto, utilizam uma sonda batizada de Roseta, capaz de alcançar até dois mil metros de profundidade.
“Estamos em permanente comunicação com cientistas em terra para definir onde parar e fazer a coleta”, diz a também bióloga Nicole Poulton, que, na ausência de Karsenti, assume a chefia da equipe científica no navio. “O oceano está sempre em movimento. É muito diferente, por exemplo, de estudar a biodiversidade em terra, onde as árvores ficam paradas sempre no mesmo lugar e os animais ocupam nichos e regiões específicas”.
Em geral, nessas paradas mais longas, que podem demandar mais de 60 horas de trabalho ininterrupto, são coletadas amostras em três níveis do mar: próximo à superfície; no chamado deep chlorophyll maximum (nível máximo de clorofila), profundidade próxima ao limite de penetração da luz solar na água (zona eufótica), por volta de 100 a 200 metros, na qual a produção de clorofila é maior nos oceanos e lagos e onde se concentra a maioria do fitoplâncton; e em águas mais profundas, a cerca de 500 metros de profundidade, onde fica boa parte do zooplâncton que se alimenta dos restos deste fitoplâncton.
Uma vez recolhidas, as amostras seguem para um laboratório “molhado” no próprio deque do veleiro, onde passam por um complexo sistema de filtragem gravitacional desenvolvido especialmente para a expedição para separar os micro-organismos em suas várias frações de tamanho: entre 0,1 e 3 microns (milésimo de milímetro); 3 e 20 microns; 20 e 200 microns; e 200 e 2.000 microns. Tal variação é outro sinal do enorme desafio da Tara Oceans, sendo equivalente a estudar ao mesmo tempo desde objetos do tamanho de um grão de areia até comunidades da magnitude de um estádio de futebol.
Separadas, parte das amostras é congelada rapidamente com uso de nitrogênio líquido (-196º Celsius) e preservadas a -20º C em um freezer até serem enviadas para os laboratórios em terra que fazem o sequenciamento genético e a análise molecular dos organismos.
“É um trabalho muito delicado. Os filtros são muito finos e as condições de balanço do barco e do clima podem atrapalhar muito”, conta Céline Dimier, bióloga responsável pela operação do laboratório “molhado” do navio. “Além disso, o DNA e o RNA do plâncton se degradam muito depressa. É por isso que, para preservá-los, usamos o nitrogênio líquido, pois mesmo no freezer as amostras demorariam muito a congelar”.
Já outra parte das amostras é preservada em temperatura ambiente e segue para o laboratório “seco” do veleiro, na verdade uma cabine convertida, onde suas propriedades fisicoquímicas são levantadas. A que contém partículas entre 20 e 200 microns, no entanto, ainda passa por outro equipamento especial, batizado FlowCam, que analisa e fotografa todos os micro-organismos presentes nela.
“Com isso, estamos achando potenciais espécies desconhecidas de plâncton em um ritmo muito rápido”, comemora Nicole, responsável também pela operação da câmera, desenvolvida pela instituição à qual está ligada, o Bigelow Laboratory for Ocean Sciences, nos EUA.
“É tudo uma questão de escala. Quanto menor é um organismo, menos conhecemos sobre ele e sua ecologia. Com a expedição, estamos conseguindo dados que servirão de base para analisar as mudanças que estão sofrendo ou podem vir a sofrer pela ação do homem e do aquecimento global, por exemplo”.
Fonte: O Globo