Quantos oceanos cobrem a superfície do planeta? Cinco, seria a resposta certa segundo as minhas provas do ensino fundamental. Mas existe algo mais sem fronteiras do que a água? No fim, um único mar cobre 71% da superfície da Terra e nos lembra de que estamos todos no mesmo planeta. O que muda é só nossa perspectiva do globo.
Foi reforçando essa ideia de um oceano único que a Organização das Nações Unidas estabeleceu a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável. Até 2030, a ideia é que discutamos o oceano que queremos.
A iniciativa vem junto com uma agenda internacional que estabelece uma série de metas, os chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ou ODS, assinadas por todos os países da ONU. Quando paramos para pensar, fazer com que os 193 países concordem em alguma coisa é um tanto impressionante por si só, mas devo admitir que sempre fui um tanto descrente quanto a essas metas governamentais.
Olhar o cenário global também não ajuda muito: crise climática mostrando seus efeitos em diversos pontos do planeta, guerras e desigualdade aumentando mesmo com a pandemia.
Por isso mesmo, neste momento em que olhares se voltam para o mar, eu me preocupo.
O espaço marinho também é visto como um novo campo para alavancar o desenvolvimento econômico. Usando termos como “crescimento azul”, “economia do mar”, “economia azul” ou “economia do oceano”, muitas empresas e governos vêm se movimentando para capitalizar os recursos marinhos, sem considerar potenciais impactos para as pessoas e para o meio ambiente.
Seria um novo ciclo de mais do mesmo? Depois desse modelo de exploração ter bagunçado tanto as coisas em terra, não fica difícil concluir que os impactos de uma “economia do mar”, nos moldes que estamos acostumados, concentraria seus impactos negativos para comunidades costeiras e locais, prejudicando especialmente mulheres e grupos não-brancos. Uma nova versão do racismo ambiental, termo utilizado para se referir ao processo de discriminação que populações periféricas e de minorias étnicas sofrem através da degradação ambiental.
Mulheres, pessoas negras e de minorias raciais são as mais impactadas pela degradação ambiental, e como a própria Organização das Nações Unidas já mostrou em seus estudos, são os grupos que mais sofrerão com a crise climática.
84,5% das vítimas imediatas do rompimento da barragem em Mariana em Minas Gerais são negras, comunidades ribeirinhas e indígenas perderam a sua subsistência com a poluição do rio. Tudo isso não é uma “coincidência” nem um “azar”. É resultado de um processo histórico que empurrou essas pessoas para áreas de maior vulnerabilidade. E já que não dá pra separar essas injustiças ambientais de raça, foi adotado o termo racismo ambiental.
A exploração na costa também não é nenhuma novidade. As áreas costeiras, por sua posição estratégica e acesso a recursos, são espaços de intensa disputa desde os tempos de colonização. O que resta das “praias desertas” são fruto do modo de vida de populações que aprenderam a conviver com a natureza e que há muito tempo entenderam que oceano não tem plural.
Essa realidade, que já é sentida há décadas pelas comunidades costeiras, mas que corre o risco de ser intensificada dentro da economia do mar, levou pesquisadores a criarem um novo termo: justiça azul.
A ideia é que uma economia azul só faz sentido junto com uma justiça azul, que reconheça e priorize as populações tradicionais que resistem no litoral do planeta. Porque no que se diz respeito ao crescimento azul, parece ser mais conveniente retratar o oceano como não utilizado, inexplorado, subdesenvolvido e despovoado – mas essa nunca foi a realidade.
E quem sofrerá mais com o aumento do nível do mar, as populações tradicionais de ilhas da polinésia francesa ou os resorts de luxo que se instalaram ali? E se começarmos a minerar o fundo oceânico para retirar metais raros para aparelhos eletrônicos de última geração, quem sentirá os impactos?
Se escolhermos um modelo de crescimento azul que priorize o desenvolvimento econômico, corremos o risco de observar as mesmas injustiças socioambientais já bem conhecidas em terra, onde recursos e usos que podem ser monetizados tendem a ser privilegiados sobre os valores sociais e culturais tradicionais, que não o podem.
Vale a pena parar e respirar fundo duas vezes. Lembrar que o oxigênio de uma dessas respirações veio inteiramente do mar, produzido por algas microscópicas que muitas vezes passam despercebidas quando estamos curtindo uma praia nas férias. É tempo de cuidar dos pequenos e nos perguntar: qual oceano nós queremos?
*Beatriz Mattiuzzo é oceanógrafa, mestranda em Práticas de Desenvolvimento Sustentável, instrutora de mergulho e cofundadora da Marulho, negócio socioambiental que intercepta redes de pesca junto a pescadores locais em Angra dos Reis. A Marulho foi a vencedora da categoria Empresas que Mudam do Prêmio Ecoa 2021.
Fonte: Ecoa