Penso que é fundamental que compreendamos que o protagonismo ideológico do bem-estarismo animal, implícito em vários tipos de denúncias muito bem-intencionadas, legitima cada vez mais o sistema sócio-cultural opressor de animais, pois permite reproduzir, em suas periferias mal iluminadas (cada vez mais alargadas pela sensação de alívio de nossas consciências que o bem-estarismo traz), aquilo que na claridade do centro se dispõe superficialmente a combater: a jugulação cruenta, as machadadas ilegais, a visão do sangue, a tortura de animais e o tal sofrimento “desnecessário”.
Em outras palavras: a luta por uma pecuária e abate não-clandestino, limpo, sem dor e técnico tem sido pré-condição de perpetuação daquilo que esse tipo de abate se propõe, na superfície, a se opor: as marretadas, machadas, o “barbarismo”, enfim, a violência injustificável.
O pacote inclui necessariamente ambos: como dois lados de uma moeda dinâmica, o verso reforçando a frente, e vice-versa – moeda que, como sabemos, é necessariamente inconcebível com uma face só.
Digo até mais: de um lado, os anseios pelo bem-estar animal, que foram sendo positivados desde o século XIX pelo menos, agravaram sim a situação em vez de melhorar: pois assim cavucaram no chão um lugar bem escondido de nossas vistas e consciências para que se cometa invisivelmente a violência contra os animais, fato que tornou possível e realizável assim o aumento exponencial do consumo de carne ao longo do último século, ensejando um processo de objetificação totalizante dos animais, sem precedentes em séculos anteriores…
Esse jogo de retro-alimentação entre dois lados tidos opostos (bem estar do animal de abate x sofrimento desnecessário) se dá de maneira análoga ao protagonismo central da democracia liberal e do estado de direito, de matriz iluminista que, ao reforçar a legitimidade de um “capitalismo limpo”, necessariamente reproduz em suas periferias as ditaduras militares, o trabalho infantil e o trabalho literalmente escravo, coisas que na superfície também se dispõe a rejeitar…
Enfim, não há como analisar fragmentariamente a situação, e devemos ter um olhar sistêmico, não-neoliberal, em vistas de compreender como funciona esse baile dos opostos, cujo reforço de um termo oposto, implica a perpetuação do par: a violência injustificável reforçando a necessidade de promover condições humanas para os animais da pecuária, e a necessidade de promover condições humanas para os animais da pecuária promovendo a violência injustificável – já que os pressupostos do bem-estarismo produzem como efeito principal um anestesiamento da consciência do consumidor, e assim de sua responsabilidade humana sobre o animal, ensejando subsequentemente a violência injustificável…
Creio ser esse um caminho para compreensão apropriada da questão do bem-estarismo, nos dias atuais…Segue abaixo um pequeno resumo da trajetória do Sísifo bem-estarista, tal qual indicado pelo texto:
Violência injustificável —> necessidade de se responsabilizar frente à “barbaridade” —> bem estarismo como resposta —> alívio da consciência do consumidor —> carne não se torna mais um problema e se naturaliza —> aumento da demanda de carne —> alargamento das periferias relativo à naturalização do carnismo (aumento da tal clandestinidade produtiva, dos “desvios” à lei bem-estarista, dos “acidentes”, etc…) —> violência injustificável —> necessidade de se responsabilizar frente à “barbaridade” —> bem estarismo como resposta —> alívio da consciência do consumidor —> carne não se torna mais um problema e se naturaliza —> aumento da demanda de carne —> alargamento das periferias relativo à naturalização do carnismo (aumento da tal clandestinidade produtiva, dos “desvios” à lei bem-estarista, dos “acidentes”, etc…) —> violência injustificável —> necessidade de se responsabilizar frente à “barbaridade” —> bem estarismo como resposta —> alívio da consciência do consumidor —> carne não se torna mais um problema e se naturaliza —> aumento da demanda de carne —> alargamento das periferias relativo à naturalização do carnismo (aumento da tal clandestinidade produtiva, dos “desvios” à lei bem-estarista, dos “acidentes”, etc…) —> violência injustificável —> necessidade de se responsabilizar frente à “barbaridade” —> bem estarismo como resposta —> alívio da consciência do consumidor —> carne não se torna mais um problema e se naturaliza —> aumento da demanda de carne —> alargamento das periferias relativo à naturalização do carnismo (aumento da tal clandestinidade produtiva, dos “desvios” à lei bem-estarista, dos “acidentes”, etc…) —> violência injustificável —> etc, etc, etc…