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Essa vida estranha de sentimentos estranhos

1 de março de 2010
4 min. de leitura
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Ouço dizer com frequência que essa insistência em defender o direito à vida e ao bem-estar dos animais é algo descabido no momento em que a humanidade está morrendo aos borbotões em razão da crise econômica, das guerras, dos terremotos, dos maremotos, dos desastres com carros e aviões e da violência social. Costumo responder que sim, acho mesmo um despropósito falar de vidas animais e não da vida humana num momento como esse.

Porque, afinal, se a humanidade está em crise, ela precisa ter foco para resolver os seus próprios problemas. Sem resolver os seus problemas, não se tem condições de olhar pelas outras vidas. Se existem tantas crianças definhando sem água e comida, tantas pessoas em campos de refugiados, soterradas pelas chuvas, exterminadas pelos terremotos, como ter tempo para pensar em vidas dos animais?

É estranho mesmo defender o direito à vida e ao bem-estar das vidas animais, quando milhões de pessoas sofrem barbaramente sem nenhum respeito aos seus direitos humanos.  Não se compara seres humanos com animais. Não se pode viver sendo tratados como animais. O ser humano tem sentimentos, sofrem muito com as agressões e injustiças, com o abandono e as doenças. Sofrem com a violência social, com os assaltos e os sequestros. Com a falta de alimentação, de moradia e de companhia.

Não são animais, são crianças, mulheres e homens. Tem sonhos, querem ser felizes.

Para isso, precisam se alimentar bem e vestir-se bem. Precisam de carne, de vestidos bonitos e quentes como os que são feitos com as peles dos animais. Que mal há nisso? Os animais existem para servir aos homens.

Sim, se tivermos esse olhar limitado de que viver é antes de tudo proteger a si mesmo e aos seus iguais em detrimento dos outros, e se vamos ignorar que o nosso emocional dialoga com o racional, é mesmo estranho falar de direitos animais em um mundo humano tão conturbado. Mas costumo dizer que o que é estranho é falar de direitos fundamentais do ser humano, sem lembrar que esses direitos devem ser preservados de forma natural, por impulso, por hábito, e sem considerar que as ações humanas não nascem do nada, que surgem construídas ao longo da vida, desde o nascimento, pelo aprendizado, pelos hábitos e pelos olhares que se aprende a depositar nas coisas à sua volta e no mundo em que está inserido.

Considerando que o que somos é uma conseqüência do que sentimos e acreditamos, o estranho é ter o entendimento de que os seres humanos têm direitos iguais, mas aceitar e promover as diferenças entre países, etnias, religiões, sexo, culturas e classes sociais, abandonar os idosos e as crianças, promover o sofrimento nas relações de trabalho, ser condescendente com a dominação do forte sobre o fraco. O estranho é fazer a classificação entre a violência que pode e que não pode.  Não aceitar que roubam uma casa, mas ser conivente com os que roubam o dinheiro público. Classificar a morte entre a que pode e a que não pode ser provocada.

O complexo mundo emocional do ser humano não agüenta viver em paz dentro das contradições tão profundas. No auge das emoções e do stress, da raiva, do ódio ou da frustração, ele se perde e adoece. Passa a ver coerência em matar como se o outro homem fosse animal, que considera uma vida menor, que existe para ser tirada para o seu usufruto. Encontra lógica em discriminar os diferentes. Em descarregar a tensão no mais fraco. Em escravizar os que não podem se defender.

O que é estranho é não compreender isso. Que uma pessoa não pode ser boa se maltrata crianças, idosos ou animais. Uma pessoa que enforca um cachorro, ou um gato, depois de chutá-los diversas vezes, pode ser uma pessoa boa? Alguém que acorrenta crianças, ou elefantes, ou tigres, e machuca-os com ponta de faca, bate com barras de ferro, pode ser uma pessoa boa?  É uma pessoa boa, aquela que tortura cavalos em rodeios, ou mata touros para seu divertimento?  O estranho é não compreender que quem maltrata e mata um ser vivo, também é capaz de maltratar e matar outros seres, como o ser humano.

A vida humana não é a mais importante, mas apenas tão importante quanto todas as vidas que existem na natureza. Não é necessário que todos, de repente, passem a compartilhar esse entendimento. O que é imprescindível, é que haja paz nas relações, que todos se unam para fazer cessar todos os tipos de violência contra as vidas.

Não importa nesse momento se alguém acredita, ou não, que os homens são mais importantes do que os animais e a natureza. O que vale é saber que as mudanças de vida começam assim, quando se começa a ter um sentimento de estranheza em relação a algumas coisas que antes pareciam normais.

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