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SABEDORIA

Esperança em tempos de ebulição: quatro lições de Jane Goodall, lenda da primatologia, para regenerar a Terra

24 de fevereiro de 2024
8 min. de leitura
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Foto: Jane Goodall Institute/Shawn Sweeney

Guerras, epidemias, perda de biodiversidade, desastres climáticos acentuados pelas mãos humanas, desigualdade econômica crescente, insegurança alimentar, polarização e fanatismo político, escravidão moderna, ecoansiedade…Vivemos tempos de ebulição que nutrem angústias cotidianas. Haverá um antídoto contra esses males e a paralisação que geram? Com mais de oito décadas de vida e uma jornada ímpar pela conservação, a famosa primatologista e naturalista Jane Goodall cresceu durante a Segunda Guerra Mundial, aprendeu sobre a morte e como a natureza humana pode ser cruel e brutal, ao mesmo tempo que amorosa, compassiva e corajosa.

Seu trabalho pioneiro mudou a forma como percebemos nossos parentes mais próximos do reino animal, os chimpanzés. Incansável, foi decisiva na pressão contra o uso de primatas como cobaias em laboratórios e na conscientização ambiental de milhares de pessoas pelo globo. Por meio do instituto que fundou — o Jane Goodall Institute –, viaja inspirando plateias em diferentes países a proteger o planeta que compartilham. Ação, diz ela, é base de sua esperança, e um antídoto.

Ao longo de encontros presenciais e online (em parte gravados durante a pandemia de covid-19) com o escritor Douglas Abrams, autor do best-seller do New York Times Contentamento: O segredo para a felicidade plena e duradoura (2017), a conservacionista compartilha sua jornada de vida e lições aprendidas no “Livro da Esperança: um guia de sobrevivência para tempos difíceis” (editora Sextante, 2023). Nele, elenca razões que sustentam sua crença positiva no destino da humanidade e nos servem de lição: o surpreendente intelecto humano, a resiliência da natureza, a energia e comprometimento da juventude e o indômito espírito humano.

O maravilhoso intelecto humano

“O que mais nos diferencia dos chimpanzés e de outros animais é o desenvolvimento explosivo do nosso intelecto”, diz Jane. Segundo ela, a capacidade do homem de analisar e solucionar problemas tornou nossa espécie “mestre” do mundo por meio do progresso tecnicocientífico. Nas artes, na cultura e na capacidade de contar histórias também os feitos são notórios. “Mas se somos tão mais inteligentes que outros animais, como podermos agir com tanta estupidez?”, questiona Douglas, sugerindo que é possível argumentar que esse mesmo intelecto surpreendente gerou o mundo em desequilíbrio que vemos hoje.

Para Jane, foi a maneira que utilizamos nosso intelecto que ocasionou as crises, não o intelecto em si. “É uma mistura de ganância, ódio, medo e desejo pelo poder que nos leva a utilizá-lo de maneira equivocada. A boa notícia é que um intelecto capaz de criar armas químicas e inteligência artificial também consegue inventar maneiras de curar o mal que fizemos a esse pobre planeta”, pondera. Não faltam bons exemplos, e Jane elenca alguns deles: energia renovável, agricultura regenerativa e permacultura, dieta mais baseda em plantas, entre outras alternativas que respondem à urgente necessidade de diminuirmos nossa pegada ecológica na Terra.

Sobre a manchas na história humana deixadas por atos de crueldade e injustiça, a naturalista afirma que da mesma forma que o homem promove a barbárie também se destaca por atos de altruísmo únicos. “Nós, humanos, ajudamos o outro mesmo que isso não traga nenhum impacto positivo óbvio para nossa vida”. Para ela, o ser humano precisa perceber que só conseguirá atingir completamente seu potencial se “a cabeça e o coração trabalharem juntos”. Este é o verdadeiro Homo sapiens, homem sábio. E um passo necessário é aplicar essa sabedoria para enfrentar quatro grandes desafios: diminuir a pobreza; reduzir o estilo de vida insustentável dos mais ricos; eliminar a corrupção e encarar os problemas causados por uma população mundial crescente e os rebanhos de animais.

Resiliência da natureza

A natureza é uma escola de resiliência. Em ecologia, ser resiliente significa ter a capacidade de se recuperar após perturbações ou mudanças significativas e imprevisíveis no ambiente, como aquelas causadas por incêndios, enchentes, secas, nevascas ou ataques que ferem as estruturas. “Achamos que somos mais espertos do que a natureza, mas não somos, e precisamos ter humildade e reconhecer que existe uma inteligência superior na natureza”, crava. Aprender com a resiliência do meio ambiente frente às intempéries é uma forma de nos reconectarmos com a sabedoria da natureza.

Um mês após 11 de setembro de 2001, dia do colapso das Torres Gêmeas, em Nova York, uma pereira foi descoberta esmagada entre blocos de concreto por uma funcionária da equipe que estava limpando os escombros. Tudo que tinha restado eram metade do caule e raízes queimadas. Mas havia um galho vivo. Depois de passar um longo período de recuperação em um centro de jardinagem, ela ficou saudável o bastante para ser plantada no que hoje é o Memorial e Museu do Onze de Setembro. Durante a primavera, ela floresce e leva muita gente às lágrimas. Foi batizada de “A Árvore Sobrevivente”.

Outro exemplo singular que Jane cita em seu livro é o de duas árvores de cânfora de mais de 500 anos de idade que sobreviveram à bomba atômica de Nagasaki, no Japão, consideradas por muitos japoneses seres sagrados.

A lista segue com menções a vastas áreas florestais que sofrem incêndios e meses depois se recuperam, e também com exemplos de regeneração no mundo animal, como o de lagartos e estrelas-do-mar que perdem parte da cauda e conseguem fazer renascer o membro. Mas ainda assim, podemos indagar, não estamos levando nosso planeta ao ponto do colapso, a um limite onde a resiliência é quebrada? A própria floresta amazônica se aproxima cada vez mais do chamado “ponto de não retorno”, com consequências nefastas para o clima no Brasil e no mundo, espécies estão entrando em extinção em ritmo jamais visto, os oceanos se acidificando com aumento da concentração de CO2 e o aquecimento global, entre outros problemas que têm se agravado.

É fácil perder a esperança diante desse cenário, reconhece Jane, mas ela acredita que a força de vontade e ação solidária farão a diferença. “Todo dia impactamos o planeta. É o efeito cumulativo de milhões de pequenas atitudes éticas que fará a diferença”, afirma. Ela lembra que todo ser vivo tem a capacidade de sobreviver e vicejar e que um dos trunfos da resiliência é a adaptabilidade. Daí a necessidade inegociável da humanidade se adaptar às mudanças climáticas e de desenvolver maneiras de desacelerá-las. Entre os caminhos que cita no livro estão projetos de restauração florestal, recuperação e introdução de espécies de plantas e animais nativos e esforços de conservação que impactam positivamente comunidades locais.

Poder dos jovens

Apesar de serem os que menos contribuem com a alta do termômetro mundial, os jovens serão aqueles que mais sofrerão as consequências da crise climática em um futuro envolto em previsões sombrias. Esse grupo tem arregaçado as mangas e lutado por mudanças como poucos. Exemplos de ativismo jovem se alastram pelo mundo, e este é um motivo de esperança para a primatologista, que há anos se dedica a projetos de educação infantojuvenil em comunidades pobres pelo mundo. O acesso à educação é, segundo ela, ponto-chave para enfrentar a crise ambiental.

O instituto Jane Goodall mantém o programa de ação comunitária Roots & Shoots em mais de 68 países. Por meio dele, os participantes identificam e abordam problemas nas suas comunidades, ao mesmo tempo que despertam para o senso da cidadania global. A iniciativa surgiu em 1991, quando um grupo de 12 adolescentes locais reuniu-se com Jane em sua casa, na Tanzânia, ansiosos por discutir uma série de problemas que tinham testemunhado na sua comunidade. Ela ficou impressionada com a energia e o desejo daqueles jovens em desenvolver uma solução para os problemas, e foi assim que nasceu o Roots & Shoots.

“Zombaram do primeiro grupo Roots & Shoots por limparem uma praia sem serem pagos. Mas logo uma explosão de atividade deu lugar a um novo fenômeno na Tanzânia: o voluntariado. Aquele foi um programa de base e, aos poucos, outras escolas se envolveram. Muitos grupos escolheram plantar árvores em pátios escolares sem vegetação”, lembra Jane. Passados alguns anos, as escolas viram nascer áreas sombreadas rodeadas por árvores e pássaros onde os estudantes podiam estudar e relaxar. Por seu ímpeto em agir, os jovens são uma porta de esperança para um mundo melhor. Muitos dos integrantes de programas passados do instituo trabalham em prol do meio ambiente de alguma forma, sejam executivos, jornalistas, urbanistas, professores e até políticos engajados com questões ecológicas.

O indômito espírito humano

Cada um tem sua definição de espírito, a depender da criação, educação, religião ou crenças pessoais. Para Jane, é uma força energética. “Uma força interior que provém da sensação que tenho de estar conectada ao grande poder espiritual que sinto com tanta força, principalmente quando estou em meio à natureza”, conta. Ela também fala em uma centelha de vida que anima todas as coisas viventes da Terra, do menor dos insetos à maior das árvores. Vem dessa energia onipresente, também, a sua quarta razão para nutrir esperança em tempos melhores: o que chama de indômito espírito humano.

“É a qualidade em nós que nos faz enfrentar o que parece impossível, e jamais desistir. Apesar do escárnio e da zombaria dos outros, apesar do possível fracasso”, explica. Como exemplos do indômito espírito humano cita Martin Luther King Jr., que lutou pelo fim da discriminação racial e a desigualdade econômica nos EUA, Nelson Mandela e sua luta pelo fim do Apartheid na África do Sul, e Ken Saro-Wiwa, nigeriano que liderou manifestações não violentas contra a poluição ambiental causada pela Royal Dutch Shell e que foi executado pelo seu governo.

Jane destaca que para além do intelecto e da capacidade de se adaptar, o ser humano só prosperou na Terra graças à sua capacidade de imaginar novos mundos e perseverar com resiliência, mas também por seu espírito indômito. Sua mensagem principal para estes tempos de ebulição que exigem respostas rápidas e soluções efetivas – que muitas vezes parecem distantes e impossíveis dada à escala de problemas – é de que com coragem e determinação, o impossível se torna possível. A mensagem é, em si, a jornada de sua vida.

Fonte: Um Só Planeta

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