Duas dezenas de pequenos brejos situados nos arredores das nascentes dos rios Tietê e Paraíba do Sul, distantes entre 50 e 100 quilômetros da cidade de São Paulo, são a única morada conhecida da primeira espécie de ave com ocorrência restrita ao estado de São Paulo, a Formicivora paludicola. Em nenhum outro trecho de mata atlântica preservado no país há registros de exemplares do bicudinho-do-brejo-paulista, nome popular da espécie, que foi descrita por pesquisadores na edição de dezembro da Revista Brasileira de Ornitologia. “Aves endêmicas de apenas um estado são raras”, afirma Luís Fábio Silveira, do MZ-USP, um dos autores do trabalho. “A natureza não respeita as fronteiras políticas criadas pelo homem.” Os bicudinhos costumam viver aos pares, um macho e uma fêmea, e têm uma autonomia de voo limitada, de apenas 25 metros. Nunca deixam o ambiente pantanoso, onde pulam em folhas e caule de uma taboa, planta típica de brejos e várzeas, para outra.
Encontrar uma nova espécie de ave, o grupo de animais mais estudado da biologia, na porção leste da maior área metropolitana do país foi uma ótima surpresa. Com 11 centímetros de comprimento e peso médio de 9 gramas, o frágil bicudinho, que se alimenta de insetos, vive nos estratos médios da vegetação de brejos isolados que estão dentro de terras dos municípios de Mogi das Cruzes, Salesópolis, Biritiba-Mirim, São José dos Campos e Guararema. Essas localidades alagadas estão nas cabeceiras dos dois rios citados, em altitudes entre 600 e 760 metros acima do nível do mar. A nova ave pertence à família Thamnophilidae, que conta com 226 espécies (chorozinhos, papa-formigas, choquinhas) e 46 gêneros. Com a inclusão do bicudinho paulista, o gênero Formicivora passa a contar com nove espécies.
Além de causar alegria, a identificação do pequeno habitante alado dos brejos da região de Mogi das Cruzes é também motivo de preocupação. O bicudinho paulista corre sério risco de desaparecer em breve. Mal foi descoberto e já pode ser considerado “criticamente ameaçado de extinção”, última categoria antes de uma espécie ser decretada extinta ou quase extinta, de acordo com os critérios da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Estudos feitos por Silveira e Glaucia Del-Rio, sua aluna de mestrado, indicam que houve um enorme encolhimento das áreas de brejo que serviam de hábitat para a ave devido à expansão dos centros urbanos e das atividades rurais e industriais no leste do estado de São Paulo. “Estimamos que a população total de bicudinhos seja hoje de 560 a 620 exemplares”, diz Glaucia. “Nossos cálculos apontam que a área atual de ocorrência da espécie (levando em conta todos os brejos em que foi encontrada) é de 1,4 quilômetro quadrado.” Uma extensão de terra mais de mil vezes menor do que a cidade de São Paulo.
Entre 1885-1905, de acordo com mapas da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo consultados por Glaucia e Marco Rêgo, havia mais de 410 km2 de brejos e várzeas nos arredores do rio Tietê e Alto Paraíba do Sul, dos quais 300 km2 exibiam as características necessárias para abrigar a espécie. “É praticamente certo que o bicudinho existiu dentro da cidade de São Paulo num passado não muito distante”, diz Silveira.
Espécie irmã
A nova ave é parecida com sua espécie irmã, a Formicivora acutirostris, popularmente chamada apenas de bicudinho-do-brejo, que ocorre na faixa costeira que vai do Paraná ao norte do Rio Grande do Sul. Mas o bicudinho paulista apresenta diferenças anatômicas e genéticas em relação a seu parente mais próximo. As coxas e a porção inferior dos machos são pretas, mais escuras do que essas partes do bicudinho do Sul. Seu dorso é de um tom marrom-acinzentado escuro, igualmente distinto do da espécie irmã. A parte superior exposta do seu bico é ainda menor do que a da ave de ocorrência mais meridional. As fêmeas das duas espécies igualmente apresentam diferenças de aparência. Estudos moleculares indicam que o último ancestral comum às duas formas de bicudinho deve ter vivido num período anterior ao surgimento do homem moderno. “Analisamos o DNA mitocondrial das duas espécies e estimamos que, evolutivamente, elas se separaram entre 250 mil e 640 mil anos atrás”, afirma Silveira.
Entre a localização dos primeiros bicudinhos paulistas e a descrição oficial da espécie, passaram-se pouco mais de nove anos. O primeiro a ver e registrar os sons de exemplares da ave foi Dante Renato Corrêa Buzzetti, do Centro de Estudos Ornitológicos, uma ONG de São Paulo, um dos autores do trabalho científico agora publicado. Em 4 de outubro de 2004, durante uma incursão por um vasto brejo em Mogi das Cruzes dominado por taboas e outras plantas aquáticas, Buzzetti se deparou com uma fêmea e um jovem adulto do que em princípio julgou serem exemplares de F. acutirostris, o bicudinho do Sul. Intrigado pela presença desses animais incomuns naquela região, voltou ao lugar no dia seguinte, avistou um bicudinho de ventre preto e coletou dois exemplares do bicho.
Pouco tempo depois, Silveira também encontrou a ave em brejos do município de Biritiba-Mirim. Em fevereiro de 2005 descobriu uma população de aproximadamente 100 bicudinhos nessa localidade. “O problema é que a área estava para ser inundada pela construção de uma barragem”, lembra o ornitólogo do MZ-USP. “Tivemos de montar rapidamente um projeto para retirar as aves de lá e reintroduzi-las em locais com as mesmas características.” Setenta e dois bicudinhos foram salvos e realocados em meia dúzia de brejos da região. É por isso que hoje há lugares em que a ocorrência da ave é espontânea, natural, e outros em que ela foi introduzida (ver mapa acima). Mas, se os brejos do Alto Tietê continuarem encolhendo, o bicudinho paulista pode sumir de vez.
Fonte: Pesquisa FAPESP