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A nova revolução dos animais

20 de julho de 2011
13 min. de leitura
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Entre direito, crítica literária, antropologia e outras disciplinas, ganha corpo um novo campo de pesquisas: os estudos animais, que põem em questão a superioridade humana e reconhecem tanto uma “cultura” animal como a animalidade do homem em livros, congressos e militância política, não sem opositores.

Alcino Leite Neto

“NÃO ATIRE O PAU NO GATO/ porque isso não se faz/ o gatinho é nosso amigo/ não devemos maltratar os animais…” É assim um trecho do “Rap dos Animais”, que consta no site do Instituto Abolicionista Animal, da Bahia, presidido pelo promotor de Justiça e professor de direito Heron Santana.

Em 2005, Santana liderou um pedido de habeas corpus -garantia legal reservada aos seres humanos- em favor da chimpanzé Suíça, a fim de libertá-la do zoológico de Salvador e transferi-la para uma reserva de primatas em Sorocaba (SP). Suíça, porém, morreu dias antes de o caso, inédito no país, ter sido julgado.

Reivindicações similares ocorreram em seguida no Brasil, sem sucesso. No final do ano passado, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recusou um pedido de habeas corpus feito por entidades protetoras de animais para libertar o macaco Jimmy do zoo de Niterói. O relator do processo justificou: o habeas corpus não é o instrumento jurídico certo para proteger o primata.

Bens Semoventes

Os animais não estão sob os cuidados das mesmas leis reservadas às pessoas. No Código Civil, são classificados como “bens semoventes”, ou seja, uma propriedade do homem dotada de movimento próprio. É a Lei de Crimes Ambientais (nº 9.605, de 1998) que garante proteção e segurança aos animais e prevê punição aos que os maltratem, mutilem ou envenenem, entre outros delitos.

A Constituição também veda práticas que levem à extinção de espécies ou “submetam os animais à crueldade” (Cap. VI, art. 225, § 1º, inciso VII).

Pedir habeas corpus para um animal é um modo de desafiar os limites do sistema jurídico e também uma forma de protesto político. A intenção é parecida à do americano Gary Francione, professor de direito que é um dos principais defensores da causa do abolicionismo dos animais. Um de seus livros, de 2008, tem como título “Animal as a Person” (o animal como pessoa).

Tradição

Ao reivindicar que animais -ao menos os primatas superiores- possam usufruir de um direito reservado às pessoas, esses grupos pretendem colocar em xeque uma tradição filosófica e cultural de séculos, que o direito apenas formaliza.

Segundo essa tradição, os homens se definem por oposição aos animais, sendo estes inferiores àqueles por estarem desprovidos da razão, da palavra e da preocupação recíproca pelos seres humanos.

Para René Descartes (1596-1650), por exemplo, os animais não passam de autômatos, já que, desprovidos de alma, não dispõem senão da pura mecânica do corpo.

Para Kant (1724-1804) -cujo pensamento exerceu tanta influência sobre a jurisprudência-, já que animais são seres desprovidos de julgamento, os homens não têm nenhum dever em relação a eles, a não ser um dever indireto com respeito à própria humanidade.

O pensamento ocidental seguiu praticamente na mesma toada até Heidegger e Levinas, no século 20. Raros foram os pensadores que, como Jeremy Bentham (1748-1832), entenderam que os animais deveriam ser dotados de direitos. Para o filósofo britânico, a defesa dos animais se justifica por estarem eles, assim como os homens, sujeitos ao sofrimento.

Na vida prática, a presunção de superioridade do homem resultou na perseguição desenfreada aos animais, quando não na extinção de espécies, na “escravização” dos animais, no aprisionamento, na morte em massa e na sua mercantilização para fins alimentares e de entretenimento doméstico.

Ética Animal

É contra essa visão utilitária e predadora que surgiram, nas últimas décadas, filósofos e juristas dedicados a discutir a criação de uma “ética animal” e reivindicar um arcabouço jurídico que dote os animais de direitos.

Ao mesmo tempo, surgiram grupos de proteção aos animais, alguns constituídos em organizações políticas, por vezes ferozmente militantes, como o Peta (People for the Ethical Treatment of Animals), criado em 1980, ou a ALF (Animal Liberation Front), fundada nos anos 70. Foi o braço brasileiro da ALF o responsável pela depredação, em 2005, do Instituto de Biociências da USP, em protesto contra o uso de animais em pesquisas científicas.

No âmbito acadêmico, da mesma maneira que no passado recente as universidades se abriram para os estudos da cultura na ótica das diferenças raciais e sexuais, vem se desenvolvendo uma nova área de pesquisas chamada “estudos animais”.

As investigações neste campo são complexas e convocam um grande número de disciplinas, como a biologia, a filosofia, o direito e a antropologia, além da literatura e de outras artes.

As pesquisas já encontraram terreno fértil no Brasil. No início de maio, foi realizado em Belo Horizonte o colóquio internacional “Animais, Animalidade e os Limites do Humano”, que promoveu mais de 30 palestras e mesas-redondas e trouxe ao país alguns ilustres pesquisadores da nova disciplina. Entre eles, o francês Dominique Lestel, da École Normale Supérieure de Paris, o britânico Tom Tyler, da Oxford Brookes University, e o americano Randy Malamud, da Georgia State University.

O colóquio foi coordenado pela pesquisadora Maria Esther Maciel, professora de teoria da literatura, e por Julio Jeha, professor de literaturas de língua inglesa, ambos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

O encontro foi considerado um pré-evento para a segunda Minding Animals Conference, que acontecerá em 2012, no Instituto de Ética da Universidade de Utrecht (Holanda). A Minding Animals Internacional (MAI) é uma associação internacional que tem entre seus patronos o sul-africano J.M. Coetzee (Nobel de Literatura em 2003) e a cientista britânica Jane Goodall, famosa por suas pesquisas com chimpanzés.

Foi Maria Esther quem também organizou o livro”Pensar/Escrever o Animal: Ensaios de Zoopoética e Biopolítica” [422 págs., R$ 39], recém-publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (Edufsc). Com 19 ensaios de vários autores, brasileiros e estrangeiros, o livro é uma das primeiras grandes iniciativas editoriais no país no campo dos estudos animais.

A primeira parte de “Pensar/Escrever o Animal” traz ensaios de viés mais filosófico, como os de Benedito Nunes, Dominique Lestel e Tom Tyler. Entretanto, o foco principal do livro (como foi também o do colóquio em Belo Horizonte) é a análise do modo como a literatura, os mitos, as fábulas e as artes abordam os animais e a própria animalidade do homem.

São examinados autores como Kafka, Coetzee, Clarice Lispector, Borges e Patricia Highsmith. As análises são de Márcio Seligman-Silva, Evando Nascimento, Raul Antelo, Eneida Maria de Souza, Jens Andermann e Lucile Desblache, entre outros.

A lista de escritores analisados inclui o curioso caso da brasileira Regina Rheda, cujo pouco conhecido “Humana Festa” (Record) seria o “primeiro romance centrado no veganismo no mundo”, segundo a professora Alexandra Isfahani-Hammond, da Universidade da Califórnia em San Diego.

Claramente militante, o livro narra as disputas econômicas e os dilemas morais em torno da criação de animais numa fazenda no interior de São Paulo. O veganismo (que deriva da palavra “vegetarianismo”) é um movimento que defende os direitos dos animais e a supressão de todo produto de origem animal -na alimentação, nas roupas, nos medicamentos etc.

Antropologia

A etologia (estudo científico do comportamento animal) fez nas últimas décadas importantes descobertas que contestam preconceitos e erros históricos a respeito dos animais. A antropologia também tem trazido novas contribuições ao debate sobre o relacionamento dos homens com os animais.

Trabalhos como o do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (e sua obra seminal “A Inconstância da Alma Selvagem”, da Cosac Naify) e o do francês Philippe Descola, que lançou neste ano “L’Écologie des Autres – L’Anthropologie et la Question de la Nature” (a ecologia dos outros – a antropologia e a questão da natureza, Éditions Quae), postulam uma guinada da antropologia para fora do antropocentrismo e do dualismo humano/não humano.

Entre muitos estudiosos, contudo, existe a percepção de que, em vista da herança antropocêntrica e racionalista da filosofia e das ciências, a imaginação literária e artística tem muito a contribuir para a compreensão do “ser” dos animais. Foi o que defendeu em 1997 o filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004) na conferência “O Animal que Logo Sou” (editora Unesp).

“Pois o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia, eis aí uma tese, e é disso que a filosofia, por essência, teve de se privar. É a diferença entre um saber filosófico e um pensamento poético”, diz ele.

Literatura

“A literatura sempre representou os animais, mas usando-os, sobretudo, como elementos de alegorias e fábulas que serviam à edificação do homem. A literatura moderna tem maior consciência do animal como sujeito”, afirma Maria Esther Maciel à Folha.

Em seu livro “O Animal Escrito: Um Olhar Sobre a Zooliteratura Contemporânea” [Lumme Editor, 102 págs., R$ 34], ela analisa escritores que viram nos animais algo mais do que simples metáforas, como Guimarães Rosa (1908-1967), “o grande animalista das letras brasileiras no século 20”, nas palavras da pesquisadora.

“Amar os animais é aprendizado de humanidade”, escreveu Rosa, no texto “Zoo” (publicado em “O Globo” em 1961). O escritor foi bastante sensível à “subjetividade” animal, bem como à questão da animalidade do homem -basta lembrar os célebres contos “O Burrinho Pedrês” e “Meu Tio o Iauaretê”, em que um caçador “mimetiza” uma onça.

Mas a preocupação com os animais vem de mais longe no país. Já comparece em Machado de Assis (1839-1908), que, segundo Maria Esther, foi “o primeiro escritor brasileiro a tratar da questão do animal sob um prisma ético”.

O autor de “Quincas Borba” (título, aliás, que se refere tanto a um personagem humano quanto a um cachorro) colocou dois burros conversando sobre a exploração a que eram submetidos na tração de trens, num artigo de 1892, “Crônica dos Burros”. Machado também apoiou o vegetarianismo e manifestou-se contra as touradas.

Para Maria Esther, uma coisa são os estudos literários sobre animais, e outra, a militância política. “Não sou uma militante, sou uma pesquisadora preocupada com as várias questões relacionadas ao animal e à animalidade”, explica.

Mesmo favorável ao direito dos animais, ela acredita que haja um radicalismo “abolicionista” que almeja afastar os animais do convívio humano. “A convivência entre homens e animais, porém, é não apenas inevitável quanto profícua para ambos, pois todos compartilhamos do vivente.”

À causa do abolicionismo animal a pesquisadora prefere a defesa de uma “comunidade híbrida” -conceito criado pelo filósofo francês Dominique Lestel. “Nessa comunidade, homens e animais compartilham vidas, afetos e até perigos. É a mesma comunidade em que vivemos atualmente, com a diferença de que ela se construiria fora do antropocentrismo dominador”, afirma.

A crescente convivência dos homens com cães e gatos é já uma forma de comunidade híbrida. “Salvo que o grande problema do convívio doméstico com os animais é a nossa tendência a humanizá-los.”

Militância

Os estudos animais vêm adquirindo um tom mais político, particularmente entre norte-americanos. “Embora nos EUA existam alguns pensadores muito importantes, ocorre um predomínio da questão da militância sobre a questão filosófica e literária”, conta Maria Esther.

A primeira Mind Animals Conference, realizada em 2009, em Newcastle (Austrália), mostrou a ela que já está em curso “um confronto entre os pesquisadores mais militantes e os mais reflexivos, que chegaram a ser acusados pelos primeiros de apatia política”.

A militância pró-animais parece ganhar cada vez mais adeptos e pode se tornar um movimento de forte impacto na sociedade nas próximas décadas.

Nesta época de descrédito das ideologias políticas, é como se o animal tivesse se tornado o novo proletário -um “sujeito”, um “vivente” explorado, escravizado e sacrificado pelos humanos e pelo capitalismo, cujos direitos precisam ser defendidos por grupos organizados e inter-relacionados globalmente. É uma verdadeira revolução dos animais que vem sendo gestada pelos ativistas.

Controvérsias

Não é só a defesa dos direitos dos animais que está rodeada de controvérsias. A dedicação dos críticos literários aos animais também está longe de obter o consenso dos intelectuais.

“Filósofos, juristas ou biólogos têm coisas muito mais interessantes a falar sobre animais e seus direitos do que críticos literários”, diz o escritor Bernardo Carvalho à Folha. Para ele, “já faz algum tempo que o paradoxo dos estudos literários é que seu objeto não pode ser mais a literatura: o objeto tem que ser sempre extraliterário.”

O autor de “Nove Noites” é simpático aos direitos animais e acha que é preciso “aplicar princípios humanistas para estabelecer esses direitos”. Considera, porém, que a deriva dos críticos para os estudos animais é sintoma de que a literatura está acabando ou perdendo a relevância num mundo massificado. “Por outro lado, é um atestado de óbito dos próprios estudos literários”, sentencia.

O fato, contudo, é que os estudos animais parecem ter aberto um caminho bastante sedutor às pesquisas acadêmicas, criando uma fértil troca multidisciplinar, como prova a coletânea francesa recém-lançada “La Question Animale – Entre Science, Littérature et Philosophie” [a questão animal – entre ciência, literatura e filosofia, Presses Universitaires de Rennes, 304 págs., R$ 40].

Organizado pelos professores de literatura Jean-Paul Engélibert, Lucie Campos, Catherine Coquio e pelo biólogo e filósofo Georges Chapouthier, o livro traz 17 palestras do colóquio “O Sentido do Animal”, realizado em 2010, em Poitiers (França).

As análises literárias predominam, mas a obra também reúne pesquisadores que tratam dos avanços dos trabalhos etológicos -como os que dizem respeito à inteligência e à capacidade de invenção de outras espécies.

Questão Animal

Vale a pena assinalar ainda o lançamento, no ano passado, de “Philosophie Animale – Différence, Responsabilité et Communauté” [filosofia animal – diferença, responsabilidade e comunidade, Librairie Philosophique Vrin, 384 págs., R$ 27]. Trata-se de uma antologia de textos-chave sobre a “questão animal”, escritos por alguns dos seus pensadores mais proeminentes em língua inglesa, como John Berger, Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione, Martha Nussbaum e John Callicott.

Aqui, o foco não é literário. O livro está mais voltado para as discussões filosóficas, jurídicas, científicas e sociais -às quais acaba por oferecer uma boa introdução.

Uma das seções mais interessantes da obra é “A Comunidade dos Animais e dos Seres Humanos” -sobre os problemas de nosso convívio com os animais-, em especial o artigo da americana Clare Palmer, “Contrato Doméstico”. Ela discute as dificuldades para que se estabeleça um novo contrato social que inclua os animais, ideia surpreendente e radical defendida por alguns pensadores.

No debate, o que está em questão não são apenas os animais mas também os homens. Depois de séculos, os humanos parecem mais dispostos a aceitar -sem medo nem rancor- sua própria condição animal e a fraternidade biológica que os une inexoravelmente aos outros animais da Terra.

“Fazer um pedido de habeas corpus em benefício de um animal é um modo de desafiar os limites do sistema jurídico e também uma forma de protesto político”

“As investigações neste campo são complexas e convocam grande número de disciplinas, como a biologia, a filosofia, o direito e a antropologia, a literatura e outras artes”

“A etologia fez descobertas que contestam preconceitos e erros históricos a respeito dos animais. A antropologia também tem trazido contribuições”

“‘Filósofos, juristas ou biólogos têm coisas muito mais interessantes a falar sobre animais e seus direitos do que críticos literários’, diz Bernardo Carvalho”

“Nesta época de descrédito das ideologias políticas, é como se o animal tivesse se tornado o novo proletário -um “vivente” explorado pelo capitalismo”

“Nossa relação com os animais é marcada pela contradição.Nós os admiramos, mas os servimos em um prato e usamos sua pele com total indiferença.” Colleen Plumb, fotógrafa americana

Fonte: Folha

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