À sombra de uma árvore ancestral, o vento traz o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas, e a brisa da chuva. Cada som é fio de uma vasta narrativa, invisível e vital: a biodiversidade. E cada fio, quando rompido, revela não só o mundo que se perde, mas também dos muitos seres que possuem vozes silenciosas. É nesse contexto comum, em diversas regiões brasileiras que o debate internacional sobre biodiversidade e direitos humanos encontra seu reflexo mais realístico ao contrapor-se a vida animal que se torna sensibilizada e consumida, anos após anos, advindo de um progresso que insiste em não a ouvir.
Genebra e a Amazônia
Em Genebra diplomatas e especialistas discutem o Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework, defendendo que direitos humanos e biodiversidade são inseparáveis, no Brasil comunidades indígenas e ribeirinhas vivem em seu cotidiano esse conflito. Compreende-se que não se trata apenas da “perda de biodiversidade” em termos estatísticos, mas da morte de animais que trazem histórias, tradições e sentidos culturais. Sem ecossistemas saudáveis, sem diversidade de espécies, não há ar limpo, água segura ou comida nutritiva.
Nesse contexto, entrou em cena o Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework (GBF), um pacto global adotado na COP-15 da Convenção sobre Diversidade Biológica, que exige que sua implementação possua uma abordagem baseada em direitos humanos: respeitando, protegendo, promovendo e implementando, dentre esses o direito a um ambiente saudável e sustentável.
Um outro fator é que reafirma, pelos mecanismos internacionais de direitos humanos — conselhos, tratados, declarações — que comunidades indígenas, populações tradicionais, camponeses, mulheres, jovens, pessoas com deficiência, dentre outros, devem participar das deliberações, ter acesso à justiça e aos benefícios da diversidade.
No GBF (Marco Mundial da Biodiversidade – Global Biodiversity Framework), muitas das convenções internacionais, tratados sobre conservação de espécies, sobre comércio de espécies ameaçadas são realizados pela CITES (Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagens), assim como, as zonas úmidas são tratadas pela Convenção de Ramsar. Ambos reconhecem que espécies de fauna — e flora — possuem valor intrínseco, e sua proteção é necessária para preservar os recursos ecossistêmicos que trazem sustentabilidade a vida humana.
O recorte dos animais: entre invisibilidade e urgência
Nessa narrativa, os animais fazem parte, não apenas como espécies — como seres únicos — mas seres vivos que também passam por sofrimento, com comportamentos complexos, com necessidades inerentes, dependentes do estado dos ecossistemas. O bem-estar animal, é negligenciado, não possui viés humanístico na sociedade contemporânea. Por outro lado, existe uma distinção entre proteger espécies/populações proteger seres individuais de sofrimento. Para isso, diversas leis de biodiversidade trazem enfoque na extinção, habitat e uso sustentável, porém minimamente protegem como funciona a vida de cada animal: fome, dor, angústia, mutilações ou destruição de seus lares, capturas, tráfico.
Estudos recentes apontam que acerca do direito internacional da biodiversidade em geral, o bem-estar animal se à margem ou de forma circunstancial, exceto, em tratados específicos de proteção a espécies ameaçadas. Ironicamente, os animais na maioria das vezes são defendidos, não por si mesmos, mas, em razão de sua perda ameaçar a saúde humana, ou a estabilidade climática, ou o alimento de comunidades. Trata-se de argumentos altruístas legítimos. Contudo, escassos para apresentar o verdadeiro valor da sobrevivência dos animais. Existe uma dissemelhança ética entre “proteger, pois me protege” e “proteger, pois, necessita ser protegido”.
Direitos animais como extensão dos direitos humanos
No Brasil, o debate sobre direitos animais, ainda possui um processo delongado. Apesar da Constituição reconhecer que animais devem ser protegidos contra crueldades, não há um alicerce profundo que lhes possibilite um bem-estar individual, assim como direitos reconhecidos de forma igualitária com os dos seres humanos.
O que Genebra debate, o Brasil exemplifica: sem biodiversidade, não há direitos humanos. Em contrapartida, também sem considerar os direitos animais, não há biodiversidade real. Enquanto se reconhece que indígenas, mulheres e jovens devem ter voz nas decisões sobre a natureza, permanece o questionamento necessário: quem trará voz aos animais?
No Congresso Nacional, projetos são deliberados para efetivar penas contra maus-tratos e tráfico, simultaneamente, existem posicionamentos contraditórios, que flexibilizam normas de caça, ampliam agronegócios sem restrições ambientais, fragilizam órgãos de fiscalização. O descompasso da bússola é visível ou delineia-se um equilíbrio em defesa da vida animal, como parte dos direitos fundamentais, ou teremos um retrocesso histórico.
Uma cena para o futuro
Diante desses meandros, imaginem uma tartaruga marinha cujos ninhos são destruídos por construções ou turistas — e que possuem o direito reconhecido de não ter seus filhotes pisoteados, de não ser caçada para ornamentação. Imaginem comunidades locais, indígenas, que vivem em harmonia com esses animais, sendo ouvidas não só para terem respaldos econômicos ou mitigação de danos, mas para protegerem a vida desses animais como parte de sua própria vida cultural, espiritual e moral.
Esse é o horizonte sugerido em Genebra, mas que precisa de posicionamentos éticos tanto no Brasil, quanto em outros países para se concretizar. O chamado que ecoa em Genebra, portanto, é este: não se deve mais fragmentar os direitos humanos dos direitos da biodiversidade — inclusive dos animais. A tragédia da biodiversidade é também a tragédia dos que não possuem voz, dos que vislumbram seus lares destruídos, seus corpos expostos à dor e ao medo, frequentemente invisíveis às leis.