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Entenda como sobrevivem os cães que moram na zona de exclusão de Chernobyl

18 de janeiro de 2022
Vanessa Santos | Redação ANDA
8 min. de leitura
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Foto: BBC | Jonathon Turnbull

O acidente nuclear de Chernobyl sentenciou o fim da União Soviética e marcou profundamente a história da Ucrânia e de toda a humanidade. Mais de 30 anos depois, e a zona de exclusão ainda parece o cenário de um filme de terror que todos querem esquecer. Porém, em meio ao exílio, soldados e cães compartilham os dias cinzas do que sobrou da cidade de Pripyat.

Bogdan (nome fictício) trabalha há quase dois anos como guarda na zona de exclusão e já nomeou quase todos os cachorros que vivem na região. Ele e os outros guardas alimentam os cães, oferecem abrigo e, quando podem, cuidam de doenças e feridas. Dos animais.

Quando a cidade foi evacuada, em 1986, os cidadãos saíram só com a roupa do corpo e a orientação era para que deixassem para trás os animais domésticos. De alguma forma, esses cães são os filhos dos sobreviventes da tragédia.

Foto: BBC | Jonathon Turnbull

Na época, uma equipe foi designada para voltar à Pripyat e matar todos os cães e animais que fossem encontrados, a instrução era para evitar que radiação se espalhasse.

Contudo, claramente, alguns cães se refugiaram ou não foram encontrados, pois os 2.600km² da zona de exclusão de Chernobyl, está repleta de cães que perambulam pelas ruas vazias.

A vida desses cães é lastimável. Além de serem expostos à radiação, ataques de predadores selvagens, como lobos, incêndios florestais e a fome assombram os dias desses pobres animais, que tem expectativa de vida de apenas cinco anos, segundo o Fundo Clean Futures, organização não governamental que monitora e fornece amparo para os cães de Chernobyl.

Foto: BBC | Jonathon Turnbull

Lucas Hixson, fundador da ONG, abandonou sua carreira como pesquisador para cuidar dos animais que habitam a fantasmagórica cidade. O fato desses cães viverem na zona de exclusão não é nenhuma novidade, inclusive alguns deles ficaram bem conhecidos nas redes sociais, depois que Clean Futures começou a fazer visitas virtuais pelo local.

Diferente dos cachorros, os guardas são figuras quase invisíveis na região. Jonathan Turnbull, candidato a PhD em geografia na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, percebeu que havia uma história a ser contada sobre aquele lugar. “Se eu quisesse conhecer os cães eu precisaria falar com as pessoas que os conhecem melhor, que são os guardas”, conta ele.

Por trás da pose taciturna dos vigiais, Jonathan descobriu relatos emocionantes sobre o convívio dos guardas e dos cachorros, são histórias que revelam a profundidade do relacionamento entre os cães e os seres humanos.

Foto: BBC | Jonathon Turnbull

Turnbull relata que os guardas deram nomes a quase todos os animais. Tem o Alfa e o Tarzan, que são bem conhecidos dos turistas que vão até lá. Eles vivem perto do famoso sistema de radar Duga, construído pelos soviéticos, e sabem fazer truques obedecendo comandos.

Tem também a cadela Linguiça, que é pequena e gorda, e adora se aquecer no inverno deitando sobre os canos de aquecimento, que foram construídos pelos trabalhadores que participaram dos esforços para desativar e descontaminar a usina nuclear danificada.

O acesso à zona de exclusão de Chernobyl, só é permitido com autorização prévia. Os guardas que ficam na região são responsáveis por realizar o controle de quem entra e sai da cidade. Alguns curiosos burlam esses postos de controle para adentrar Pripyat. Quando os guardas identificam os invasores, notificam a polícia para leva-los embora.

Jonatham vive em Kiev, capital da Ucrânia, e começou a visitar regularmente a zona, foi assim que ele conheceu Bogdan e outros guardas dos postos de controle. Inicialmente, eles relutaram em ser entrevistados, mas o geógrafo conseguiu convencê-los.

Foto: BBC | Jonathon Turnbull

Em troca Turnbull ofereceu aos guardas a oportunidade de eles participarem da sua pesquisa, que ele afirmava ser uma “grande virada”. Ele forneceu aos soldados câmeras descartáveis e pediu que eles tirassem fotografias dos cachorros, não retratos posados, mas cenas do cotidiano. Em troca os vigilantes fizeram um pedido: “por favor, por favor, traga comida para os cães”. E Turnbull assim o fez.
As fotografias tiradas pelos guardas revelam a amizade que os guardas desenvolveram com os cães que vivem na zona de exclusão.

Em dezembro de 2020, Jonathan publicou seu estudo com as imagens feitas no projeto, entrevistando os homens uma segunda vez para a BBC. Os guardas pediram que suas identidades não fossem reveladas, para evitar investigações disciplinares sobre o trabalho deles. Por conta disso, Jonathan escolheu o pseudônimo “Bogdan” para se referir aos vigilantes.

Bogdan conta que os cães sempre vêm ao seu encontro atrás de algum alimento e afeto. A lealdade é recíproca, Turnbull conta que os guardas ajudam os animais retirando carrapatos, oferecendo vacina antirrábica e medicamentos, quando estão doentes.

Monitorar uma área desabitada pode ser um trabalho monótono às vezes, mas os cães estão sempre por perto alegrando o dia dos trabalhadores. Em alguns postos de controle, os guardas adotaram alguns dos cachorros, e dão a eles comida e abrigo. Mas nem todos são tão mansos. “Não podemos dar vacina em Arka porque ela morde”, disse um dos homens a Turnbull.

Uma outra cadela é ainda mais difícil de se aproximar. “Você precisa dar a ela sua refeição e se afastar. Ela espera você sair e só depois come”, explica o guarda, sobre um animal que se recusa a ser tocado.
Quando não conhecem a pessoa, os cães naturalmente latem para ela, mas quando percebem que não estão ameaçados, eles se acalmam e começam a abanar o rabo. Em algumas ocasiões, parece até que os cachorros estão sorrindo, acrescenta ele.

Os visitantes de Chernobyl são aconselhados a não tocar nos cães, por precaução, já que os animais podem estar carregando poeira radioativa. É impossível saber por onde os cães andam, e algumas partes da área ainda tem um alto índice de contaminação.

Além dos cães, existem outros animais silvestres continuam vivendo na zona de exclusão de Chernobyl. Em 2016, Sarah Webster, bióloga da vida selvagem do governo norte-americano que, na época, trabalhava na Universidade da Geórgia, publicou um estudo com seus colegas revelando como mamíferos, desde lobos até javalis e raposas-vermelhas, haviam colonizado a área. Com câmeras escondidas, eles mostraram que apesar de ser um número pequeno, muitas espécies moram na região.

Os animais que vivem nos arredores das usinas, não estão necessariamente confinados naquela área. Um estudo posterior de Sarah e colegas, publicado em 2018, detalhou os movimentos de um lobo que recebeu um dispositivo GPS. Ele viajou por 369 km desde a sua casa na Zona de Exclusão, fazendo um longo arco para sudeste, depois novamente para nordeste, adentrando o território russo.

Lobos, cães e outros animais poderiam teoricamente carregar contaminação radioativa, ou mutações genéticas que poderiam ter sido transmitidas pelas gerações, até locais fora da Zona de Exclusão. “Sabemos que isso está acontecendo, mas não entendemos sua extensão ou magnitude”, afirma Webster.

Turnbull conta que os guardas não se preocupam muito com a radiação, mas ocasionalmente eles verificam os cães com os detectores.
Para Greger Larson, arqueólogo que estuda a domesticação de animais na Universidade de Oxford, no Reino Unido, a companhia e cumplicidade dos cães acaba transmitindo confiança as pessoas que interagem com eles regularmente. “Os guardas estão como que se colocando na posição dos cachorros. Se o cão está bem, isso significa que você também está bem”, sugere ele.

Contudo, a falsa sensação de segurança pode ser alarmante. “É um ambiente excepcional”, lembra Jonathan. “Você não consegue ver o perigo, mas você sabe o tempo todo que ele pode estar lá, mesmo que tudo pareça normal.”

Apesar dos riscos da radiotividade, os guardas enfatizam o quão é benéfico para eles a presença dos cães. Bogdan afirma que sabe reconhecer o latido dos cães, que é diferente para cada situação, seja um ser humano desconhecido, um veículo ou um animal silvestre. Esses sinais de advertência são muito úteis e Bogdan considera os cães como “assistentes” no seu trabalho.

A interação dos cães é um processo natural que vem acontecendo há milhares de anos, segundo Greger Larson. “Encontramos essa interação ao longo dos últimos 15 mil anos ou mais. As pessoas fazem isso, elas formam associações muito próximas não só com os cães, mas com outros animais domésticos, como que dizendo ‘esta é a nossa ligação com o ambiente”, pontua ele.

Os cães de Chernobyl, não são totalmente domesticados, nem totalmente selvagens. Sarah Webster, que realizou um estudo diferente do de Turnbull nos anos anteriores, afirma que existem sim uma diferença. “A Zona de Exclusão é muito diferente porque foi abandonada pelos humanos. As únicas pessoas que estão naquela região diariamente, na verdade, são os guardas”, assinala. Para ela, as oportunidades que esses cachorros têm de fazer amizade com seres humanos são muito poucas.

Enquanto para o mundo externo as histórias desses cachorros são fascinantes, para os guardas é uma vivência de uma conexão muito mais profunda. Bogdan conta que quando lhe perguntam por que é permitido que os cães permaneçam em Pripyat, ele responde: “porque eles nos alegram. Para mim, pessoalmente, é uma espécie de símbolo da continuidade da vida nesse mundo radioativo pós-apocalíptico.”

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