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TRAGÉDIA CLIMÁTICA

Enchentes no RS: quais os impactos para a fauna silvestre?

A bióloga, pesquisadora e professora Maria João Veloso da Costa Ramos Pereira afirma que os animais que sobreviveram enfrentam agora o desafio imposto por hábitats completamente alterados.

17 de julho de 2024
Isabella Baroni
14 min. de leitura
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Foto: Mauricio Tonetto/Governo RS

Além do impacto sobre a vida humana das enchentes que acometeram o Rio Grande do Sul desde 29 de abril, a tragédia climática teve impactos severos na biodiversidade local.

Tanto a serra quanto as planícies gaúchas sofreram com as fortes chuvas e a fauna silvestre irá refletir, no longo prazo, os efeitos da destruição dos hábitats naturais que ocupavam. Para entender um pouco mais dessas consequências para os animais, o Fauna News entrevistou a bióloga, pesquisadora e professora do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Maria João Veloso da Costa Ramos Pereira.

Maria João é docente dos programas de Pós-Graduação em Biologia Animal e Ecologia na UFRGS, além do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É colaboradora do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (Cesam) da Universidade de Aveiro (Portugal) e coordenadora do Bird and Mammal Evolution, Systematics and Ecology Lab (Bima-Lab) da UFRGS. Atua na pesquisa integrando estudos em ecologia, filogeografia, genética populacional e modelagem ecológica para compreender os padrões ecológicos e evolutivos da diversidade de vertebrados, principalmente aves e mamíferos.

Em junho de 2024, Maria João, juntamente com os professores do Instituto de Biociências da UFRGS Luiz Roberto MalabarbaFernando Gertum Becker e Márcio Borges-Martinspublicou um alerta na revista Nature sobre o risco ambiental na reconstrução do estado do Rio Grande do Sul.

Fauna News – Cientistas, ambientalistas e poder público já estão trabalhando para entender os impactos das enchentes sobre os animais silvestres?
Maria João – Cientistas e ambientalistas, certamente. Posso falar apenas dos trabalhos que conheço de colegas da UFRGS e de outras universidades e ONGs do estado. Há várias décadas, desenvolvemos estudos que buscam entender os impactos das alterações antrópicas, ou seja, alterações de origem humana, sobre a fauna e flora do nosso Estado. As recentes enchentes, resultantes de chuvas intensas e da incapacidade dos ambientes de resistirem a esse volume de água, são consequência de alterações de origem humana no clima global e de modificações feitas nos mais variados hábitats, como matas ciliares e campos nativos de planície e altitude.

Muitos de nós já vêm monitorando diversas populações de animais no Estado, incluindo espécies de insetos, crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, observando como esses animais respondem às modificações no hábitat. Por exemplo, analisamos os efeitos da construção de barragens, que submergem hábitats importantes para animais terrestres e criam barreiras à dispersão da fauna aquática; da urbanização próxima a linhas de água, que elimina a mata ciliar; e da conversão de campos nativos em monoculturas de soja. As enchentes são mais um distúrbio que ocorre com cada vez mais frequência e, portanto, serão incluídas em nossas análises sobre os impactos dessas modificações no hábitat sobre os animais.

Existem iniciativas tentando entender inicialmente os efeitos mais imediatos, indiretamente, inferindo a partir de dados existentes e modelos preditivos, e, diretamente, monitorando diferentes espécies de interesse especial para a conservação. Os resultados mais robustos devem vir das observações diretas e do monitoramento da fauna no campo, por isso ainda não estão disponíveis.

Fauna News – Já é possível descrever alguma consequência? Para alguma espécie, por exemplo?
Maria João – As inundações podem ter impactos graves na biodiversidade, com o grau de impacto sendo principalmente influenciado pela duração, profundidade, momento da inundação e características das espécies. As inundações são muito recentes para podermos obter estimativas imediatas como, por exemplo, sobre o tamanho populacional, ou seja, quantos animais foram perdidos nas enchentes e quanto isso irá impactar futuramente na sobrevivência dessa espécie. O que podemos afirmar é o seguinte:

  • Inundações causam mortes individuais e podem levar à extinção local, reduzindo significativamente a biodiversidade em áreas submersas.
  • Diferentes espécies são afetadas em graus variados, sendo que trabalhos feitos em outras regiões do planeta indicam que mamíferos e insetos são bastante afetados. Os mamíferos terrestres, grupo com o qual eu trabalho, embora consigam nadar, não o conseguem fazer durante períodos muito longos, e larvas de insetos, que rastejam lentamente, são particularmente vulneráveis. Anfíbios e répteis são considerados melhores nadadores, mas ainda assim, considerando a força das correntes que observamos na serra Gaúcha e no Vale do Taquari, é bem provável que a maioria dos animais arrastada pelas correntes não tenha sobrevivido. As aves e os morcegos tendem a ser menos afetados porque podem voar para longe das inundações.

Existem também variações sazonais, ou seja, no longo do ano, nos impactos. Por exemplo: animais que hibernam no inverno poderão ser arrastados de surpresa por uma enchente. Aves que nidificam no solo são mais afetadas na primavera e no verão porque seus ninhos, com ovos e crias, são também destruídos.

Fauna News – Já existe alguma estimativa de um número total de animais silvestres que possam ter morrido nas enchentes?
Maria João – Que eu saiba, ainda não. Existe apenas um esforço para estimar indiretamente o potencial de animais mortos para algumas espécies, particularmente as ameaçadas de extinção.

Fauna News – Existe a preocupação em ter esse número? Se sim, por quê?
Maria João – Com toda a certeza. Para muitas espécies, só conseguiremos obter estimativas aproximadas ao longo do tempo. Contudo, podemos obter essa informação em projetos já em curso que quantificam os tamanhos das populações animais por meio de metodologias de captura-recaptura. Ao recapturarmos menos animais, podemos ter uma ideia aproximada de quanto aumentou a mortalidade, ou seja, de quantos indivíduos foram perdidos. Outra abordagem é a comparação da diversidade genética: à medida que as populações diminuem em tamanho, a tendência é que a diversidade genética também diminua, permitindo quantificar aproximadamente a perda de indivíduos nas populações.

Fauna News – Quais foram os grupos faunísticos ou espécies mais afetadas pelas enchentes?
Maria João – Acredito que os animais da parte mais alta do planalto estejam relativamente mais seguros. Contudo, os alagamentos das áreas mais baixas, como turfeiras e banhados, certamente representam um problema sério. Muitas espécies que ocupam preferencialmente esses ambientes devem ter sido gravemente afetadas, não apenas pela força das águas, mas também pela ausência de rotas de fuga para os campos adjacentes, que estão convertidos para agricultura e pastagem ou até completamente destruídos. Esse problema afeta, por exemplo, pequenos mamíferos, anfíbios e répteis dessas turfeiras e banhados. Não enfrentamos apenas os impactos diretos e imediatos das enchentes, que matam instantaneamente os indivíduos arrastados pelas águas, há também os impactos indiretos e de médio prazo, resultantes da perda de hábitats favoráveis a esses animais. Esses hábitats, que já estavam sob grande alteração prévia, foram completamente devastados pelas águas, agravando ainda mais a situação.

Fauna News – Como a fauna silvestre, de modo geral, se comporta em situações como essa?
Maria João – Cada espécie terá um comportamento específico, que também depende do ambiente e intensidade do evento. Em situações graves de inundação, muitos animais não conseguem escapar a tempo, resultando em morte por afogamento. Felizmente, algumas espécies têm a capacidade de detectar mudanças nas condições ambientais, como as fortes chuvas, e podem se deslocar para áreas mais elevadas ou seguras antes que as inundações ocorram. Esse comportamento é observado em mamíferos, por exemplo. Animais que não conseguem dispersar rapidamente procuram refúgio em locais mais altos dentro dos seus hábitats, como árvores, tocas em pontos altos ou até estruturas construídas pelo homem. Espécies adaptadas a áreas naturalmente sujeitas a inundações sazonais tendem a possuir mecanismos para sobreviver em condições alagadas temporárias. Isso inclui peixes que migram para águas mais profundas e espécies aquáticas que se enterram na lama.

Outras espécies possuem a capacidade de ajustar o seu comportamento em resposta às inundações, modificando padrões de atividade, buscando alimentos alternativos ou alterando locais de reprodução. Mas isso depende também da disponibilidade desses recursos em locais acessíveis. Agora, esses comportamentos variam amplamente entre espécies e podem ser moldados pelo histórico de perturbação humana nos hábitats naturais, que no caso do Rio Grande do Sul é bastante intensa.

Fauna News – Os animais que sobreviveram migraram para outras localidades ou tendem a permanecer em sua área de ocupação original?
Maria João – Não posso afirmar, mas considerando o nível de devastação que ocorreu em muitos dos locais afetados pelas enchentes, para muitas espécies permanecer não será opção porque não existe nem alimento nem refúgio. A resposta dos animais certamente também irá depender da capacidade de deslocamento de cada espécie, do grau de deslocamento sofrido durante a enchente e da disponibilidade de hábitat para deslocamento. A redução da conectividade entre os ambientes naturais, prévia e resultante da enchente, interfere nos padrões naturais de deslocamento da fauna.

Fauna News – A fauna em fuga tende a procurar saída pelas estradas e rodovias? Esse fenômeno preocupa por conta dos atropelamentos de animais?
Maria João – Eu não diria que tende a procurar. Isso também vai depender da espécie ou, pelo menos, do grupo taxonômico, mas é sim uma possível rota de fuga. Aumentando a passagem de animais na estrada, a probabilidade dos atropelamentos aumentarem é grande.

Fauna News – Houve um aumento de atropelamento de fauna silvestre em decorrência das enchentes?
Maria João – Não tenho resposta para essa pergunta. Colegas da UFRGS trabalham especificamente com atropelamentos e poderão responder melhor, mas, realisticamente, muitos de nós tivemos muita dificuldade em prosseguir os nossos trabalhos de campo devido à dificuldade de acesso às áreas de estudo. Só agora estamos conseguindo retornar a atividades de campo e muitas áreas ainda permanecem inacessíveis.

Fauna News – Passado algum tempo, quando não tivermos mais áreas alagadas, qual a tendência de comportamento dos animais silvestres e o que eles encontrarão no ambiente? Faço essa pergunta pois, no caso dos incêndios florestais, após o fim do fogo, a fauna sofre com a chamada “fome cinza”, em que muitos animais sofrem por falta de alimento.
Maria João – Após as enchentes, os animais enfrentarão diversos desafios, especialmente dependendo do grau de devastação das áreas afetadas. A recolonização dos hábitats inundados ocorrerá gradualmente, à medida que as condições se tornarem favoráveis novamente. No entanto, a disponibilidade de alimentos será um desafio significativo até que a vegetação se regenere, restaurando a cadeia trófica. Espécies que dependem de estruturas específicas para abrigo, como tocas e ninhos, precisarão reconstruir ou reocupar esses locais, o que pode ser influenciado pela disponibilidade de materiais naturais e pelo tempo necessário para essa reconstrução. Espécies resilientes, geralmente mais adaptáveis em termos de abrigo e alimentação, poderão resistir com menos impacto. Por outro lado, espécies mais sensíveis necessitarão de medidas adicionais de conservação para se recuperarem (parcialmente) dos impactos sofridos.

Fauna News – No longo prazo, vamos ter um desequilíbrio nos ecossistemas do Pampa e da Mata Atlântica no Rio Grande do Sul?
Maria João – Não vamos ter. Já temos! Pampa e Mata Atlântica são biomas brasileiros profundamente impactados pela atividade humana. A Mata Atlântica vem sofrendo perdas significativas de vegetação nativa há séculos, devido a urbanização, desmatamento e conversão para agricultura, enquanto o Pampa, nas últimas décadas, tem enfrentado uma conversão massiva para monoculturas agrícolas e florestais. O aumento das chuvas intensas está se tornando uma realidade mais frequente, exacerbando ainda mais esses problemas.

É crucial entender que essas chuvas intensas estão diretamente ligadas ao aumento da temperatura global. Enquanto o Rio Grande do Sul enfrentava tempestades, Sudeste e Centro-oeste experimentavam temperaturas até 10º C acima do normal para a época. No Brasil, as mudanças no uso da terra, como a supressão de vegetação nativa, são responsáveis por 1,12 bilhão de toneladas brutas de gás carbônico equivalente (CO₂e), o que representa 48% das emissões totais do país. O CO₂ é o principal gás responsável pelo aquecimento global. Portanto, a conservação dos ecossistemas nativos não só preserva a biodiversidade diretamente, mas também mantém sua capacidade de capturar e armazenar carbono, o principal fator da mudança climática. Então, a conservação de ambientes ribeirinhos é fundamental para aumentar a resiliência às enchentes.

Campos, banhados, turfeiras e matas ciliares oferecem uma gama significativa de serviços ecossistêmicos que ajudam a mitigar os impactos de eventos climáticos extremos, como as chuvas fortes e as enchentes consequentes. Esses ambientes promovem maior infiltração de água no solo e reduzem a velocidade do fluxo hídrico. Por outro lado, se não restaurarmos esses serviços ecossistêmicos, teremos efeitos sinérgicos negativos – aumenta a intensidade da chuva, a probabilidade de enchentes de grande dimensão e os ecossistemas nativos, já muito fragilizados, não terão capacidade de resistir às enchentes ou de prover os serviços que mitigam os seus impactos.

Fauna News – Quais as consequências dessa enchente para a fauna aquática?
Maria João – As enchentes podem ter uma série de impactos significativos na fauna aquática, que variam conforme a intensidade e a duração da enchente, assim como as características específicas dos hábitats afetados. Enchentes rápidas e intensas, como a de maio de 2024, podem resultar na morte imediata de peixes, crustáceos e outros animais aquáticos que não conseguem escapar a tempo, sendo arrastados pela correnteza ou ficando presos em áreas com baixa oxigenação, como acontece se ficam enterrados em lama.

As inundações podem destruir ou modificar drasticamente os hábitats aquáticos ou semi-aquáticos, como rios, lagos, banhados e estuários, levando à perda de áreas essenciais para desova, alimentação e abrigo de muitas espécies. Além disso, muitas espécies de peixes e outras formas de vida aquática dependem de condições específicas para a reprodução, como áreas rasas e calmas para desova. As enchentes podem destruir esses locais, afetando negativamente os ciclos reprodutivos.

Há ainda um conjunto de impactos indiretos e que atuam num prazo mais longo:

  • Enchentes podem transportar espécies invasoras para novas áreas, onde competem com espécies nativas por recursos e alteram ecossistemas locais.
  • Enchentes introduzem sedimentos, nutrientes, poluentes e materiais tóxicos na água, afetando sua qualidade e prejudicando a saúde de animais aquáticos.
  • Enchentes causam mudanças na estrutura do hábitat aquático afetando a disponibilidade de presas e predadores, desequilibrando as interações bióticas (entre os organismos vivos) e aumentando a vulnerabilidade de certas espécies a uma situação já muito sensível.
  • A rápida mudança nas condições ambientais devido às enchentes pode causar estresse físico e alterações comportamentais nas espécies aquáticas, afetando padrões de alimentação, migração e reprodução.

Fauna News – O que você acha sobre a estrutura que o poder público do Rio Grande do Sul tem hoje para atendimento de fauna silvestre nestas situações de emergência?
Maria João – Muito frágil! A estrutura de apoio e atendimento à fauna silvestre é extremamente precária e os poucos profissionais que desempenham esse trabalho são verdadeiros heróis. É urgente aumentar significativamente os investimentos nos setores de fauna, tanto em nível estadual quanto municipal, abrangendo recursos humanos, logísticos e financeiros. Muitos dos responsáveis pelo atendimento emergencial à fauna atuam em condições de trabalho e segurança precárias, frequentemente sem o equipamento adequado. Além disso, há uma carência severa de infraestruturas físicas adequadas, como centros de atendimento e mantenedouros, para abrigar a fauna resgatada com o mínimo de condições e dignidade. O esforço e a boa vontade desses profissionais são admiráveis, porém é completamente inaceitável que o estado atual das estruturas de apoio à fauna seja tão precário.

Para avançar rumo a um Rio Grande do Sul digno do século 21, é imperativo restaurar a qualidade dos serviços estaduais e municipais. Infelizmente, essa degradação não se limita aos setores ambientais, mas é amplamente generalizada em diversos serviços públicos. A tendência parece ser de desmonte completo das estruturas e das capacidades dos órgãos de meio ambiente.

Fauna News – Tem alguma mensagem que queira deixar para os leitores?
Maria João – Neste momento crucial para o nosso planeta, é mais importante do que nunca escutar os cientistas. A Ciência trabalha no sentido da compreensão dos desafios ambientais e climáticos que enfrentamos. Pesquisas e recomendações científicas são fundamentais para orientar as nossas ações individuais e coletivas rumo a um futuro sustentável. Além disso, um serviço público forte e atuante é essencial para conseguirmos enfrentar esses novos desafios. Investir em recursos humanos, logísticos e financeiros nos setores ambientais e em outras áreas críticas é fundamental para garantir respostas eficazes e sustentáveis aos problemas que enfrentamos. Agir de maneira sustentável não é apenas uma escolha, mas uma necessidade urgente.

Cada um de nós pode contribuir adotando práticas que reduzam nossa pegada ambiental, promovendo o uso responsável dos recursos naturais e apoiando políticas que visem a conservação e a restauração dos ecossistemas; no fundo apoiando políticas de sustentabilidade: ambiental, social, econômica e cultural. A conservação ambiental não é apenas uma questão de proteger a biodiversidade e os hábitats naturais, mas também uma questão de sobrevivência. A nossa própria existência depende da saúde do planeta e das espécies que compartilham conosco este lar. Proteger o meio ambiente não é apenas uma opção, mas uma necessidade urgente para assegurar um futuro seguro e próspero para nós e para as gerações futuras. O destino da nossa espécie e de todas as outras que compartilham este planeta conosco está intrinsecamente ligado às nossas escolhas políticas e à responsabilidade cidadã que exercemos.

Fonte: Fauna News

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