Por David Arioch
Um garoto de oito anos, sentado com as pernas cruzadas na cabine de um caminhão, gritou com toda a força: “Vai lá, John Cena, vai, garoto, mostra para ele, eu quero sentir toda a sua dor!”
John Cena, no caso, não era o lutador profissional americano, mas um pastor-alemão surrado, de pelo marrom-alaranjado, cuja cabeça, naquele momento, estava enfiada nas mandíbulas de um rival durante uma briga sangrenta, uma das 13 organizadas em um estádio num único dia no mês passado, como parte da celebração do Noruz, as festividades que comemoram o ano-novo do calendário persa.
John Cena conseguiu soltar a cabeça e, em frenesi, atacou o adversário, um cachorro chamado German, até que o juiz declarasse o vencedor e os monitores da luta os separassem.
Diferentemente das rinhas de cães na maior parte do restante do planeta, essas estavam se realizando abertamente e sem o menor receio de serem reprimidas. Na realidade, havia um policial, Ahmad Fawad, em serviço.
Ele empunhava um grande bastão para manter os animais de duas pernas sob controle, nem sempre com sucesso.O local do evento era uma arena pública ao ar livre no meio de Mazar-i-Sharif, cidade no norte do Afeganistão; os ingressos custavam 50 afeganes, menos de três reais. Milhares compareceram.
Os esportes violentos que usam animais são vistos nas mais diversas formas no Afeganistão e são organizados sem controle, apesar da oposição dos mulás, que denunciam a prática como pecaminosa, e das críticas cada vez mais frequentes feitas por uma geração de jovens mais cultos que consideram essas lutas um costume detestável incentivado por comandantes militares e seus seguidores armados.
Os afegãos encenam brigas com praticamente todos os tipos de animais: cachorros, galos, camelos, canários, tentilhões, codornas, pombos. Embora as rinhas de cachorro e pássaros sejam tecnicamente ilegais, as multas chegam a modestos 150 dólares (600 reais) – uma fração das somas apostadas regularmente.
Nos ainda mais populares jogos de buzkashi, os cavalos não lutam entre si, mas os ferimentos aparecem aos montes, visto que os animais mordem, escoiceiam e chutam. Além disso, os condutores os açoitam, e uns aos outros, com chicotes nesta que poderia ser descrita como uma versão particularmente perversa do polo.
Era possível encontrar uma abundância dessas atividades durante o Noruz. Para a briga de cachorros, por exemplo, é o fim da temporada, pois a maioria das lutas se realiza durante o inverno. Os proprietários dos cães acreditam piamente que o frio protege os inúmeros ferimentos dos animais de infecções. Lutar no calor, segundo eles, seria desumano.
O confronto no estádio em Mazar atraiu donos de cachorros de todo o Afeganistão, com prêmios variando entre 65 dólares (260 reais) e mais de 20 mil dólares (80 mil reais). Normalmente, os donos acordam um valor a ser pago pelo perdedor ao vencedor. As apostas extraoficiais, usualmente consideráveis, são feitas pelos espectadores.
Naquele dia, à medida que a multidão se formava, jovens garotos organizavam combates rápidos de treino com os cachorros; um cão mais fraco ajuda o dominante a entrar no clima de luta. A maioria dos cachorros lutadores era grande e de raça mista, alguns tão fortes que eram necessários um cabresto, uma coleira e dois homens para contê-los.
Vendedores circulavam com bandejas na cabeça, repletas de chamuças e doces, enquanto latidos implacáveis ressoavam de todos os cantos. Os monitores lavavam os cachorros prestes a lutar para garantir que nenhum tivesse recebido camadas de pesticidas ou pimenta em pó para evitar mordidas.
As multidões da celebração do Noruz e todo o dinheiro das apostas não atraem apenas donos de cachorros. Wais Qasab entrou calmamente no estádio com seus cinco camelos de luta, incluindo um preto enorme de 2,5 metros de altura, que, como informou, era seu campeão.
Ele contou que consegue reproduzir animais desse tamanho cruzando um macho da espécie camelo-bactriano, ou camelo de duas corcovas, com uma fêmea da espécie dromedário, camelo árabe ou de uma corcova. Os machos bactrianos são mais agressivos; os árabes, mais altos, disse.
Ele mostrou vídeos no celular de embates passados; os animais parecem lutar usando o longo pescoço até um se render e sair correndo. “Um bom camelo de luta pode chegar a valer 200 mil dólares (800 mil reais)”, garantiu Qasab, que saiu sem brigar, já que o adversário esperado não apareceu.
No entanto, havia lutas de cachorro em excesso, um espetáculo em que os donos dos animais praticamente participam do combate, dando tapas na bunda dos cães e os empurrando de volta à luta com gritos de incentivo.
Os duelos terminam quando os juízes decretam que um dos animais está exibindo comportamento submisso; eles raramente lutam até a morte, em parte porque os cachorros vitoriosos são valiosos demais para serem submetidos a ferimentos graves.
Tofan Satari, de 18 anos, estava entre os primeiros a lutar naquele dia, e seu cachorro, Shiraz, venceu o quinto confronto; ele tinha cicatrizes suficientes para comprovar o feito. Na casa de Satari, o animal tem seu próprio quarto e nunca brinca com as crianças. “Não seria uma boa ideia”, justificou.
Foi então que uma briga começou no estádio – entre dois homens. Os respectivos cachorros tinham acabado de terminar uma luta e os juízes declararam vitória do marrom-claro Bee sobre o preto Leopard. O dono deste, Akbar, se recusou a pagar e estava sendo vaiado pela multidão com os dizeres “Akbar perdedor”. O vitorioso, Javed, entrou no coro e ambos trocaram socos. O que se viu a seguir foi um tumulto generalizado envolvendo centenas de pessoas.
“Os cachorros não são os únicos animais aqui”, declarou um dos espectadores. Ele não quis dar o nome, mas disse que era um estudante universitário e garantiu que aquela era sua primeira e última luta de cachorros.
Em qualquer outro lugar, tal aversão é comum. Um vendedor de livros da Mesquita Azul de Mazar, Aziz Ibrahimi, disse que nunca assistiu a uma luta de cachorros ou a uma partida de buzkashi. “É desumano, selvagem e nocivo aos animais”, disse, e acrescentou:
“Nós nos denominamos um país muçulmano, mas isso não é algo que o Islã defende. Os que apoiam esportes desse tipo são, em sua maioria, pobres e analfabetos, ou ricos que ganharam dinheiro de maneira ilícita, como os milicianos.”
Ismat Afghan, de 21 anos, estudante, prefere a pista de boliche local ao campo de buzkashi. “Não é justo machucar animais dessa maneira. Não gosto e não assisto.” Os entusiastas das brigas de cachorros adotam uma postura defensiva quanto ao passatempo, apesar da aparente impunidade.
Muitos proibiram estranhos de fotografar ou filmar – mesmo que eles estivessem fazendo muitas fotos e vídeos deles mesmos. “Se vocês, jornalistas, fizerem registros, vai aparecer na televisão e eles vão proibir os jogos”, argumentou Mohammed Alim, de 30 anos, que veio de Kunduz para ver as rinhas de cachorros.
Após lutar, Bee estava mancando muito. Javed Masjidi, de 33 anos, o dono, afirmou que o cachorro ama brigar e que é bem tratado; recebe mais proteína na dieta do que o próprio Masjidi e sua família. Ele trabalha em uma fazenda, onde o cachorro é alimentado com sobras dos matadouros, um litro de leite por dia e meia dúzia de ovos. O treino físico diário inclui caminhadas de quatro horas.
“Os mulás reclamam muito, dizem que é pecado; por isso, fazemos onde eles não podem ver”, confessou Masjidi. O mulá Abdul Basir Bahrawi esclareceu que quase não há dúvidas de que o Islã proíbe qualquer jogo que fira ou mate animais, brigas de cachorros em particular.
Entretanto, levantou uma questão: será que competições violentas, como o buzkashi, são piores do que os combates enjaulados ou as lutas profissionais dos Estados Unidos? “Após 40 anos de guerra, muita coisa se quebrou por aqui”, concluiu.