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Educação vegana versus recurso à autoridade

9 de novembro de 2010
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“Os pais raramente pensam em desafiar os ensinamentos de seus próprios pais, ou os ensinamentos de seus próprios mestres-escolas, ou o código social aceito. Tendem a receber o credo integral de uma cultura como natural. Pensar nessas crenças, analisá-las, exige muito trabalho mental. Desafiá-las envolve demasiados choques”.
A.S. Neill

É muito comum ouvir de alunos, pais, docentes e corpo burocrático na unidade escolar onde leciono que o veganismo não tem nada a ver com a minha disciplina. Essa, digamos, reclamação, é oriunda do choque que o veganismo dá na vida acomodada, irrefletida que as pessoas têm. Geralmente procuro expor a definição de ética (filha ilustre da filosofia) e depois a de veganismo e assim cruzo-as mostrando a indissociabilidade delas. Alguns entendem, outros não. Muitos gostariam de não ter entendido, pois saem dessa conversa com uma necessidade de reflexão sobre suas práticas diárias zunindo na cabeça.  Mas ambos relutam.

No que se refere ao aspecto alimentar do veganismo, ou seja, o vegetarianismo, os opositores (alunos, pais, docentes e corpo burocrático) dizem: “você não é nutricionista nem médico para dizer o que podemos ou não comer e beber”. Realmente eu não sou nem nutricionista nem médico, e também não posso dizer o que você pode comer e beber, até porque você pode comer e beber o que quiser. Mas o que eu posso dizer e vou continuar dizendo é que do ponto de vista ético você não deve comer e beber “alimentos” que vieram do sequestro, confinamento, tortura e assassinato de outros animais tão sensíveis e conscientes dessa sensibilidade quanto você.

No que se refere ao entretenimento, os opositores dizem: “você não pode atrapalhar nosso lazer, não há nada de errado com os zoológicos, parques aquáticos, rodeios, exposições de cães etc. etc. Os animais são bem tratados, sem contar que você não é biólogo nem veterinário.” Fato, não sou biólogo nem veterinário, e não sou eu que quer atrapalhar o seu lazer, é a ética que insiste em desnudar o seu sadismo, o seu gozo às custas do sofrimento psicofísico alheio. É a ética que não aceita a tortura como fonte de prazer.

No que se refere à objeção vegana à falácia da ciência vivissectora, seja a biomédica, a farmacológica, militar, química e todas as outras, os opositores dizem: “se não vai testar nos animais, vai testar em quem? A ciência não pode parar de evoluir [argumento do benefício], você quer que voltemos à Idade Média? Além do mais, você não é cientista, o que sabe sobre o assunto?”. Concordo em parte, só com a parte que diz que não sou cientista. É, não sou. E é necessário ser para saber que a única evolução nessa prática é a da conta bancária e a do currículo do pesquisador?  Mais verba e mais status acadêmico. Também não quero que voltemos à Idade Média, mesmo acreditando que em várias situações cotidianas ainda não saímos dela. E será que a questão é a de saber em quem vai testar as drogas ou o porquê desses testes? Aos interesses de quem as pesquisas científicas com animais respondem? Qual a diferença dos experimentos com os animais realizados no século XVII dos efetuados hodiernamente em quase todas as faculdades e laboratórios? A diferença é que hoje, depois de tanta evolução científica, “os animais são afogados, sufocados e mortos de fome; têm seus membros decepados e seus órgãos esmagados; são queimados, expostos à radiação e usados em cirurgias experimentais; são submetidos a choques, criados em isolamento, expostos a armas de destruição em massa, levados à cegueira e à paralisia; são induzidos a ter ataques cardíacos, úlceras e convulsões; são forçados a inalar fumaça de tabaco, a beber álcool e a ingerir várias drogas, como a heroína e a cocaína”1.

No que se refere ao vestuário, os opositores dizem: “É aula de Moda ou o quê? Por que não usar o couro, a vaca já está morta mesmo. Qual o problema com a lã, eles não vão matar a ovelha para tirar a lã dela. Tirar a pele de algum animal é cruel, mas faz parte da tradição daquele país. E o que essa questão do que vestir tem a ver com a sua matéria? Quer dar uma de estilista agora?”.  Como não poderia deixar de ser, não sou estilista e nem dou aula de Moda. Dou aula de ética. Esse é o ponto, ética. A escolha do que vestir também traz implicações éticas, a partir do momento em que escolho cobrir meu corpo com o que deveria cobrir outro.

No que se refere aos animais domesticados, os opositores dizem: “até o meu direito de ter uma companhia você quer tirar?”, “que negócio é esse de castrar, ela não tem o direito de ser mãe?”, “os psicólogos dizem que a companhia de um animal doméstico faz bem  e pelo que sei você não é veterinário nem psicólogo”. Bingo! Só fiz algumas disciplinas na Psicologia, e Medicina Veterinária nem me arrisquei no vestibular. E de maneira nenhuma quero lhe privar de uma boa companhia, o que eu almejo é privar os animais não humanos da reificadora especista companhia humana. E antes de as fêmeas de outras espécies terem o direito de ser mães, elas precisam ter o direito de não ser propriedade na sua mão, de não ser uma máquina reprodutora para benefício do seu bolso e do seu ego.

Essas frases que os opositores dizem diante da introdução do veganismo e dos direitos animais em sala de aula trazem uma questão que muito me chama atenção, é o recurso à autoridade. Como a minha disciplina é Filosofia, a primeira coisa que os opositores acomodados (ou poderíamos chamar também de “menores”, “homens-massa”, “filisteus da cultura”, “Eichmanns”, “espíritos de seriedade” e “antivida”), fazem com o incômodo provocado pelo veganismo é apontar a minha não formação em Biologia, Veterinária, Medicina, Nutrição, Moda, Geografia, Psicologia, Direito, entre outras.

Para essas pessoas. aula de filosofia é falar da vida de filósofos, seria uma aula de biografias. O que elas não fazem ideia – e nem estão interessadas em saber – é que a grande maioria dos filósofos refletiu sobre nossas condutas morais e que a ética (palavrinha muito apreciada pelo senso comum, mas só apreciada e, no sentido mais vulgar do termo) não se dedica apenas às relações do humano para com o humano. Por isso, o educador vegano deve ter consciência que, ao escolher educar para o veganismo, optou por um projeto político-pedagógico que se estenderá por todos os anos restantes de sua vida.

A consciência que deve guiar o educador é a de que “ser vegano não é algo estático, de fato não é um estado de ser, e sim um movimento contínuo, uma luta contínua, não contra alvos externos, mas contra alvos internos. É uma maneira de passar a limpo os arquivos mentais que nos conduzem intuitivamente em nossas escolhas diárias. Ser vegano implica em abrir mão das intuições morais herdadas da tradição e pôr no lugar delas um principio ético do qual não se abre mão na hora de comer, de ir para cama, de divertir-se e de instruir-se”2.

O trabalho é árduo, ainda, por vezes solitário. No entanto, não é necessário ter uma mente enciclopédica como o recurso à autoridade leva a crer, para defender esse novo modo de educar, mas é imprescindível que busque o domínio de sua disciplina voltada para o ensino fundamental e médio por um lado e da literatura animalista do outro. Quando digo literatura animalista me refiro à defesa ética dos animais não humanos, ou seja, os direitos animais, por exemplo, as obras de Tom Regan e Gary L. Francione. Busque conhecimento, a maioridade, a Aufklärung kantiana3. Antes de procurar educar os educandos, o educador deve educar-se a si mesmo; educação contínua, dialética, crítica e autocrítica, persistente e corajosa diante de muitos obstáculos como esses descritos por Regan:

“… temos vários milhares de anos de civilização ocidental ensinando que os animais existem para satisfazer as necessidades e os desejos dos seres humanos. Em seguida, temos as grandes massas da humanidade aceitando essa sabedoria milenar. Depois, temos as grandes indústrias de exploração animal gastando centenas de milhões de dólares em publicidade, protegidas pelas leis federais, dizendo às grandes massas que sim, é verdade, os animais existem para satisfazer nossas necessidades e nossos desejos. Finalmente, temos as estruturas sociais (o sistema educacional, as instituições religiosas, as tradições legais, os restaurantes, as lojas de roupas, as formas de entretenimento familiar, o complexo industrial biomédico e o que passa por esporte entre os aventureiros da caça-e-pesca, por exemplo). Em face à soma dessas forças poderosas (…) A luta pelos direitos animais não é para os medrosos, nem para quem está consumindo o movimento da moda. Para os leais, a luta é um compromisso para toda a vida. Para os engajados, o que nós damos do nosso tempo, talento e esforço não é inútil. Aqueles de nós que permanecem na luta não se veem contando os grãos de areia no Saara”4.

Ao prescrever, e não impor, o ideal vegano, o educador deve deixar sempre claro que “quem proíbe os humanos de fazerem certas coisas, quem impõe a eles rever os conceitos sobre os quais assentam a moralidade, não são os veganos, é o principio ético da não violência, do respeito pela autonomia de todos os seres que são sujeitos de suas vidas, e de quem jamais deveríamos ter tirado esse estatuto, em outras palavras, a quem jamais deveríamos ter escravizado”5.

Notas:

1 REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Porto Alegre: Lugano, 2006. p. 238.
2 FELIPE, Sonia T.  A desanimalização do  consumo humano: desafios da ética vegana. In: WWW.sociedadevegana.org/
3 KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?”. In: Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 115-122.
4 REGAN, 2006. p. 241.
5 FELIPE, Sonia T. A desanimalização do  consumo humano: desafios da ética vegana. In: WWW.sociedadevegana.org/

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